“Você tem brio?” Motivação para estudar
Você vai chegar em casa agora, e ao invés de entrar no [TikTok] você vai botar no Google:
“Kant”, “Fundamentos da metafísica dos costumes”.
É domínio público, custo zero.
E aí você pega e seleciona, vai, as três primeiras páginas.
“Ô professor, e as outras páginas?”
Foda-se! Ele não se incomoda com mil, nós vamos dar para ele uma chance: três páginas.
Você seleciona, imprime e lê.
“Mas, professor, três páginas leva um minuto e meio.”
Não. Não leva não; porque você pega o primeiro parágrafo, lê, e ele vai te produzir um certo desconforto. E isso com a aula! Com a aula.
Aí você pega o primeiro parágrafo e lê de novo…
“Professor, o senhor tá me chamando de burro?”
Não! Se eu estou te chamando de burro, chame-me também, porque é também assim que eu leio.
Lê a terceira vez o primeiro parágrafo, aí vai para o segundo parágrafo. Uma vez. Duas vezes… Três vezes… Então, gasta uma hora em 3 páginas.
“Professor, desse jeito eu nunca vou saber qual é o final da história.”
Bom, então: não tem o final da história. O resto do livro é tão desinteressante quanto essas três primeiras páginas. Você não tá perdendo nada. Fique só nas três primeiras páginas. Tá certo?
E, e, e, por quê? Porque se você não fizer a experiência da leitura de um texto difícil agora, acredite: você terá perdido “a” chance. “A” chance.
“Mas, professor, eu não me interesso por questões filosóficas.”
Não! É só uma questão de brio! Você tem brio?
Sabe o que é brio? É eu dizer: “Malandro, você é tosquinho. Você não entende.” E você: “Nossa! Nossa! Eu volto para casa, eu vou…. A primeira coisa que eu faço… Mas, nem xixi, velho! Eu vou lá, eu vou lá, ‘Kant…’, e vem o texto, e eu vou ler, porque como pode que um cara escreveu uma coisa que eu não entenda? Não tem como! Eu vou ler aquela merda até entender.” Isso é brio.
Se não, o sujeito caga na sua cabeça e você não reage! Aí vai pegar o Kotler, tem um solzinho, né? Pra você, é o máximo que dá, velho. Você tem um teto, não tem jeito. O vento venta, o mar mareia, o sapo sapeia, e você é marqueteiro. Você… Dali para cima, você não passa. Você está dando razão para os gregos, você nasceu pra coió.
Não pode! Isso te fere a alma, cara! “Como assim eu não vou entender? Eu comi na infância! Me deram leite materno! Me deram leite ninho. Me deram não sei o quê… Meu cérebro tem o tamanho de um cérebro normal. Neurônio tem neurônio à vontade.” Então, então, porra, se o cara escreveu, velho, você só vai entender o que ele escreveu! Você imagina que ele teve que tirar do zero aquela merda toda!
É que nem o teorema de Pitágoras: ele descobriu o teorema! Você só tem que aplicar no triângulo retângulo! A hipotenusa é tanto, o cateto é tanto, quanto é o outro cateto? Você só tem que pegar, elevar ao quadrado, somar, diminuir, chegar no… E você erra! Vai ser burro na cadeia! Car*lh*! O cara na Grécia, séculos antes de Cristo, descobriu o que quantos mil anos depois você não consegue aplicar! Você tem que comer alfafa! Vai ser burro assim no inferno!
Claro, isso é um tipo de cutucada.
Mas você vai dizer: “Mas, professor, a pedagogia…”
A pedagogia que se foda! Você precisa sentar a bunda na cadeira e melhorar a tua capacidade de pensamento porque depois você aplica isso aonde for. Porque se você só ficar no show do Ary Toledo, coisas fáceis, solzinho…. pelo amor de Deus, velho! Na quinta série primária já daria para entender essa merda. Pega alguma coisa de gente! Tenha culhão! Mesmo que não tenha nada a ver com você! Tenha sangue! Reaja!
“Mas, professor, eu não faço questão nenhuma de…”
Tudo bem. Fiz o que pude.
Porque é isso mesmo, né? O que que eu tô te dizendo? O que todo mundo diz? “Não, nem pega o texto”, né? “Isso aí é para dois ou três.”
Porra, se o cara me diz “Isso aí é para dois ou três”, então é pra mim! Cadê a porra do negócio?
É que nem aquela coisa do Bourdieu lá, né? Eu já contei essa história. O Bourdieu foi meu orientador. Eu tava numa aula, ele vira e fala: “Os circuitos de consagração social serão tanto mais eficazes quanto maior a distância social do objeto consagrado.” Aí eu tô gravando aula do cara, aí eu chego em casa, né, na cozinha, para não acordar o Joaquim [Barbosa] que é meu colega de quarto clandestino e virou Ministro do Supremo; para não acordar o Joaquim eu vou para a cozinha: “Les circuits de consécration sociale seront d’autant plus efficaces selon la distance social…”
Aí você lê de novo a frase: “Les circuits de consécration sociale…” Aí você lê de novo “Les circuits de consécration sociale…”. E de novo. E você começa a se sentir mal, cara.
Aí você lê trinta vezes a porra da frase e você não entendeu o que o cara quis dizer… Isso é… Você tem que se sentir incomodado!
Por quê? Porque a sua inteligência é o que você tem de melhor. Se ela não dá conta de uma merda de uma frase, então, você é um ser defecante, né? Por outro lado, pra cagar, todo dia eu cago que é uma beleza.
Não! É aquilo que você tem que entender!
Mas aí você vai pro cara e diz: “Não entendi a frase.” E o cara ainda zoa da sua cara. “Mas é uma frase elementar.” Nossa! É de moer o fígado, cara! Como assim é elementar e eu não entendi? É desse brio que eu estou falando! Esse brio.
É esse brio que levará você a progredir intelectualmente, porque estudar, aperfeiçoar a capacidade intelectiva, pensar com competência, é tão esforçado quanto ter músculos, correr, nadar travessia. Exige… Exige empenho! Exige dedicação! Exige bunda na cadeira! Exige…
Então, é um pouco essa a ideia. O que eu fiz aqui? Dei as chaves do castelo. Fiz a cama. Facilitei. Agora, pega o texto, deita, e entende. “Por que?” Porque não tem por que não entender.
* Transcrição da fala do professor Clóvis de Barros Filho durante uma aula na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.