Saúde, Moradia e Direitos na pandemia de Covid-19
Em 21 de outubro de 2020 eu tive a satisfação de falar aos participantes do Congresso Internacional do Vetor Norte sobre a proteção da saúde no plano internacional. Esse pequeno texto contém as ideias que compartilhei, e as ideias que quis compartilhar sobre esse gravíssimo tema, aqui tratado à luz do contexto da pandemia.
Nós estudamos história nos tempos de escola, na universidade… Lemos sobre grandes acontecimentos ocorridos quando nós nem ensaiávamos em estarmos vivos… Há a tentação de perceber aquilo tudo como muito distante.
Mas a verdade é que a gente não apenas estuda história, a gente vive a história.
Essa pandemia ficará como um desses acontecimentos que habitam os livros escolares e que deixam marcas profundas, principalmente naquelas e naqueles de nós que sofreram ou sofrerão os seus impactos maiores.
Pelos seus impactos diretos e indiretos, essa pandemia é uma das maiores crises enfrentadas pela humanidade nos últimos cem anos.
Ao mesmo tempo, infelizmente, é um evento de proporções reduzidas se comparado com outras tragédias que se avizinham , como a possibilidade de surgirem outras doenças infecciosas mais letais, a gravíssima questão ambiental e do risco de acidentes ou conflitos nucleares.
Qual é o papel do Direito diante disso? O direito à saúde, como nós sabemos, está na Constituição brasileira e nos instrumentos internacionais dos quais o nosso país é parte. O que isso significa na prática? Na vida das pessoas?
Jornalistas profissionais fizeram uma reportagem recente sobre um de muitos dramas vividos pelos nossos irmãos e irmãs nesses tempos difíceis: o drama dos trabalhadores pobres que perderam suas casas no meio da pandemia.
Uma das histórias descritas pelos jornalistas é a do Jucelio de Sousa Lima, de 39 anos. Antes da pandemia, Jucelio vivia com sua esposa Michele, grávida de sete meses, e os três filhos num apartamento alugado.
Jucelio é motoboy. Com a pandemia, viu sua renda despencar, ficou impossível pagar o aluguel. Nas palavras do próprio Jucelio, era pagar o aluguel ou comprar comida.
O dono do apartamento pediu o imóvel de volta. Jucelio estava menos que um salário mínimo. Não conseguiu alugar outro lugar.
Desesperado, pediu para ficar numa ocupação que tinha visto nas andanças como motoboy pela cidade. Conseguiu um espaço de 9 por 5 metros.
Era gente demais precisando de algum lugar, e espaço de menos. E quem não construísse um barraco em uma semana tinha que ceder o espaço para outra família.
Jucelio tinha uma moto própria que usava pra ganhar um extra, além do seu trabalho de motoboy para uma empresa (com a moto dos seus patrões).
Vendeu a moto própria, pediu dinheiro emprestado pros irmãos e pros chefes, comprou os materiais de construção e, com a ajuda de amigos, ergueu o barraco.
Jucelio tinha a esperança de ficar ali até conseguir juntar dinheiro para pagar as dívidas e comprar novamente uma moto.
O respiro de Jucelio, da mulher grávida e dos três filhos, num barraco improvisado de um assentamento informal, durou pouco.
Menos de 35 dias depois, Jucelio e sua família foram despejados de novo, junto com mais 179 famílias que viviam na mesma ocupação.
Pelo que eu pude entender da reportagem, o despejo veio depois de uma ordem judicial obtida pelo governo do estado onde Jucelio mora e por uma empresa que tem contratos com o poder público. Governo e empresa queriam o terreno de volta.
Uma grande contribuição que nós, profissionais jurídicos, podemos dar no contexto da pandemia diz respeito a como os direitos se relacionam com as muitas situações dramáticas que estão a ocorrer — como a de trabalhadores despejados.
Até o momento, não há medicamentos que resolvam a doença. Não há. E também não há vacina aprovada e pronta pra distribuição. Há muitas pesquisas em andamento nessas duas frentes, remédio ou tratamento e vacina; os tratamentos estão avançando; mas a situação ainda não mudou pra valer.
Isso fez com que a doença tivesse que ser enfrentada por meio de medidas não-farmacêuticas, como:
- Medidas gerais de higiene (das mãos, de superfícies)
- Uso de máscaras
- Isolamento e quarentena de casos individuais
- Medidas individuais e coletivas de distanciamento físico para conter a propagação do vírus (proibição de aglomerações, cancelamentos de eventos públicos…)
- Medidas mais restritivas de distanciamento (fechamento de fronteiras, quarentenas gerais)
Trabalhadores pobres como o Jucelio enfrentam dificuldades para adotar essas medidas.
Como “distanciamento”, num barraco pequeno, apinhado entre muitos outros barracos pequenos? Como é isso?
Lavar as mãos e as superfícies em assentamentos informais onde o acesso regular à água limpa costuma ser precário ou inexistente?
Nós, profissionais ou estudantes do Direito, fomos treinados, ou estamos sendo treinados para enxergar o mundo juridicamente; a olhar para as situações de modo a entender o que elas significam do ponto de vista jurídico.
Pois bem. O que uma situação como a da reportagem nos diz do ponto de vista jurídico? O que ela nos diz, por exemplo, em relação à proteção jurídica da saúde?
Como vocês sabem, o direito à saúde está garantido pela Constituição brasileira, e também por instrumentos jurídicos internacionais ratificados pelo Brasil, como os tratados de direitos humanos.
O treinamento que estudantes de Direito recebem permite que nós possamos enxergar as situações do ponto de vista desses direitos mais básicos. Isso tem um nome técnico: enfoque de direitos humanos ou abordagem baseada em direitos humanos. A literatura especializada estrangeira chama isso de “human-rights based approach.”
Jornalistas profissionais fizeram uma reportagem sobre trabalhadores pobres que perderam suas casas no meio da pandemia, como o Jucelio.
A atividade desses jornalistas é um exercício de um direito humano muito importante: o direito humano à liberdade de expressão.
Apesar dos seus esforços para continuar trabalhando como motoboy, Jucelio não conseguiu pagar o aluguel do apartamento onde morava com sua família e foi despejado.
Poderia ser dito que o dono do imóvel exerceu o seu direito à propriedade, que também é um direito humano garantido, por exemplo, pelo artigo 21 da Convenção Americana.
Mas, e Jucelio e sua família? E o direito deles de não viver sem abrigo, feito bicho?
O direito à moradia é também um direito humano garantido pela Constituição e pela normativa internacional.
Garantir esse direito cabe não ao dono do imóvel, não a um particular específico, mas ao Estado.
O que significa ter um direito humano à moradia? Se a moradia fosse só uma mercadoria, e se você não pode pagar por ela, você fica sem moradia. Mas, não. Nossas sociedades decidiram dar à moradia o caráter de direito, de direito humano, de direito fundamental.
As nossas sociedades também estão organizadas de modo que o acesso à moradia pode se dar através do mercado. Como foi para Jucelio, enquanto teve condições de pagar o aluguel. Tudo bem. Mas o que ocorre quando as pessoas não conseguem pagar?
Elas devem ser abandonadas à sua própria sorte? Como se a moradia fosse não um direito, mas apenas uma mercadoria qualquer?
Os tratados internacionais de direitos humanos costumam estabelecer órgãos responsáveis por supervisionar o cumprimento das normas.
Um dos trabalhos desses órgãos é o de aplicar as normas gerais a situações específicas.
Pensemos novamente no direito à moradia. Se o Jucelio tem esse direito, mas se ele não consegue mais pagar o aluguel, esse direito significa que ele não pode ser despejado sem que haja alguma alternativa. Algo parecido foi dito por um desses órgãos dos tratados internacionais, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, em seu Comentário Geral №4.
Nesse documento, o Comitê afirmou, dentre outras coisas, que as pessoas têm um direito à moradia independentemente de sua idade, de seu pertencimento a determinado grupo ou de situação econômica. É isso que significa ter um direito, e ter o direito de exercer esse direito sem qualquer forma de discriminação.
Se as pessoas têm direitos, o Estado tem deveres ou obrigações — mais especificamente, obrigações de respeitar, de proteger e de promover os direitos humanos através de medidas administrativas, legislativas e de qualquer outra natureza.
Essas obrigações são do Estado como um todo. Isso inclui o Judiciário. Chamado a resolver conflitos que impactam direitos, o Judiciário tem o poder e o dever de decidir de modo a respeitar, a proteger e a promover direitos como o direito à moradia.
Jucelio e sua família foram para uma ocupação. Ocupações costumam ser assentamentos informais estabelecidos por pessoas pobres ou muito pobres. Muitas ocupações são fruto de ações organizadas: as pessoas se unem em defesa do seu direito humano à moradia quando esse direito não está sendo respeitado e garantido pelo Estado.
Sob o enfoque de direitos humanos, pessoas que se organizam na luta por um direito estão exercendo direitos humanos específicos, como o direito de livre-associação, o direito de reunião e o direito de livre-expressão.
Esses direitos também estão protegidos pela Constituição e por tratados internacionais.
Jucelio, a esposa grávida Michele e seus filhos, segundo a reportagem, foram novamente despejados, junto com mais dezenas e dezenas de famílias pobres que viviam num assentamento informal.
Cada uma dessas pessoas é titular de um direito humano à moradia.
O que esse direito significa concretamente? No Comentário Geral №7, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais afirmou, dentre outras coisas, que isso significa o direito de não ser vítima de despejos forçados, de não ser retirado à força de um local sem que haja alguma alternativa.
Pode ser que essa alternativa não tenha existido; que o direito dessas pessoas tenha sido violado. Eu não posso julgar um caso com base numa reportagem apenas; e meu propósito aqui é outro: é mostrar, por meio de um exemplo concreto, o que os olhos treinados de alguém com formação jurídica é capaz de enxergar.
Muito bem. E isso tem tudo a ver com saúde.
A Covid, como vocês sabem, é uma doença infecciosa que pode ser fatal. Felizmente, tem uma letalidade mais baixa do que outras infecções. Ainda assim, causou um número espantoso de mortes até o momento, e a pandemia ainda segue seu curso.
Em 1985, a Comissão Interamericana examinou uma denúncia de violações de direitos humanos que envolvia o Brasil. Era um caso sobre indígenas Ianomami.
Um dos aspectos era o da saúde. A Comissão entendeu que, no caso concreto, o direito à saúde dos indígenas significava um dever do Estado de prevenir e de tratar doenças infecciosas.
Para pensarmos esse dever no contexto da Covid, lembremos do que foi dito antes sobre as tais medidas não-farmacêuticas.
Na situação de alguém que é despejado, que é levado a morar na rua ou em algum assentamento precário, fica difícil ou impossível adotar essas medidas.
Essas pessoas ficam menos protegidas. O risco delas de contrair a Covid é aumentado.
Percebam, portanto, que garantir o direito à moradia dessas pessoas é, ao mesmo tempo, garantir o direito à saúde.
Na Faculdade de Direito, nós aprendemos que as pessoas têm um direito à saúde, um direito à moradia, dentre outros direitos.
E aprendemos também que os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes.
Eu espero, nessas breves linhas, ter ajudado a mostrar o que essas coisas significam em concreto, na vida de cada uma e de cada um e, especialmente, na vida dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados.
Post-Scriptum. Enxergar as situações difíceis através do enfoque ou da abordagem baseada em direitos permite que esses direitos sejam visibilizados. Isso é muito importante. É uma contribuição para que eles passem a ser respeitados. Há também outros caminhos, como o de judicializar violações no nível interno, e também no nível internacional. O caminho da visibilização pode provocar efeitos tão concretos quanto o da judicialização, e em menor prazo.
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Para saber mais:
- Sobre direitos humanos e a pandemia como um todo:
https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/pdf/Resolucao-1-20-pt.pdf
- Sobre o sentido e o alcance do Direito à Moradia no plano internacional:
https://www.refworld.org/docid/47a7079a1.html
https://www.refworld.org/docid/47a70799d.html
- Sobre o sentido e o alcance do Direito à Saúde no plano internacional:
https://www.refworld.org/pdfid/4538838d0.pdf
- Sobre Direito à Moradia e a questão dos despejos durante a pandemia de Covid:
https://www.ohchr.org/EN/Issues/Housing/Pages/COVID19RightToHousing.aspx
* O presente texto, assim como a palestra realizada no Congresso Internacional do Vetor Norte, reflete as opiniões do seu autor em caráter individual, como especialista independente.