Rolando Boldrin: “Crença e Descrença”
Por Rolando Boldrin (TV Cultura, Programa Sr. Brasil, 23/02/2012)
É muito interessante essa coisa da crença e da descrença. Por exemplo: dois caboclo vem vindo na rua. Um, falador demais. O outro fala pouco. De repente, um olhou pro céu e falou: “Rapaz, esse ano a seca vai ser braba, viu? Tô te falando, a seca esse ano vai ser pior que a de 1932.” E o outro: “Não vai não, cumpádi, Deus tá no céu.” E o primeiro: “Uai, e em 32 Deus tava aonde?” É, tem a crença e a descrença.
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Com a crença e com a descrença eu convivi a minha vida inteira. Se por um lado minha mãe era católica, rezadeira, muito devota de santo e tudo mais, rezadeira de terço, por outro lado meu pai era ateu, era materialista, e era daqueles materialistas ferrenhos mesmo.
Falar em Deus pro meu pai era uma bobagem. A gente até ria de vez em quando dele, porque ele soltava umas lá que a gente dava risada desse ateísmo, desse radicalismo dele. Por exemplo: passava um esmoleiro na rua. “Uma esmolinha pelo amor de Deus!” Ele falava: “Tira o Deus que eu dou.” E o caboclo: “Uma esmolinha!” Ele: “Agora eu dou.” Aí dava lá um tostão, e o esmoleiro: “Deus lhe pague!” E ele falava: “Tá me devendo muito!” Ele fazia essas brincadeiras, né?
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E minha mãe rezava terço. Rezava… Rezava pra todos os filhos, doze filhos! Rezava pra todos eles, uma filharada danada. Pra netaiada, rezava pros netos passarem na escola, aquela coisa toda. Rezava pro verdureiro porque soube que a mulher dele tava doente… Eu soube que a minha mãe rezava até pro Cid Moreira da Globo! Aquele que fazia o Jornal Nacional. Rezava um terço pra ele. E ele não sabe disso!
E aí um dia eu fui lá, minha irmã me contou, eu perguntei: “Ô mãe, mas a senhora reza pro Cid Moreira? Por quê?” “Ah, filho, eu vejo ele trabalhando na televisão e quem trabalha na televisão precisa muito de reza.”
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Nesse negócio de crença e descrença… Lá em São Joaquim tinha um padre, o padre Mário. Ele tinha uma característica interessante, porque era viciado em jogo de baralho, em truco. Era tão viciado que no domingo, pra dar a comunhão, distribuía as hóstias igual carta: “Toma a tua, toma a tua, toma a tua, toma a tua…”
E um dia ele foi tomar café na casa de um sitiante lá perto de São Joaquim. Foi de charrete, eles andam de charrete lá, né? Quando chegou na frente da fazendinha, do sítio do homem lá, o homem já tava lá no alpendre, o café já tava esfriando.
Antes do padre entrar pra dentro, deu uma olhada no sítio, e tava uma beleza! Bem arrumadinho. Um laranjal todo florido, embaixo não tinha nenhum matinho, tudo rasteladinho… Na frente da casa aquelas cerquinhas pintadinhas de branco cheias de flores coloridas, a grama cortadinha... Enfim, tava lindo o sítio do homem.
O padre: “Filho, tava olhando teu sítio. Mas que beleza! Tá tão bem tratado, tão arrumadinho, que a impressão que eu tenho é que Deus é teu sócio!” E o homem: “Você precisava de ver quando Deus tava sozinho aqui a porcaria que era, o matão que era isso aqui.” Porque tem a crença, e tem também a descrença, né?
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Eu me lembro do grande escritor Guimarães Rosa, mineiro, maravilhoso, que escreveu “Grande Sertão: Veredas”… No “Grande Sertão…” tem um pedaço, lá, sobre crença e descrença, que é assim:
“O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que salva da loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma… Muita religião, seu moço! Eu cá não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue.
Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardeque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar o tempo todo.”