Raízes filosóficas da hermenêutica (Tina Botts)*

Henrique Napoleão Alves
13 min readAug 9, 2024

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Na foto, à esquerda, o filósofo Jürgen Habermas; à direita, o filósofo Hans-Georg Gadamer.

As abordagens hermenêuticas do significado são tematizadas e utilizadas em muitas disciplinas acadêmicas: arqueologia, arquitetura, estudos ambientais, relações internacionais, teoria política, psicologia, religião e sociologia. A hermenêutica especificamente filosófica é única porque, em vez de adotar uma abordagem particular do significado, se preocupa com a natureza do significado, da compreensão ou da interpretação.

A hermenêutica jurídica tem suas raízes na hermenêutica filosófica, que questiona não apenas como melhor interpretar um determinado texto, mas também a questão mais profunda do que significa interpretar um texto. Em outras palavras, a hermenêutica filosófica toma como objeto de investigação o próprio processo interpretativo e busca práticas interpretativas destinadas a respeitar esse processo. A hermenêutica filosófica, então, pode ser alternativamente descrita como a filosofia da interpretação, a filosofia da compreensão ou a filosofia do significado.

O problema central da hermenêutica filosófica reside em determinar com sucesso, algo como uma interpretação, compreensão ou significado objetivo à luz do fato aparente de que todo significado é determinado através do filtro da subjetividade de pelo menos um intérprete. A hermenêutica filosófica busca transparência no processo interpretativo na busca por determinações de significado. Nessa visão, melhores teorias de interpretação (1) capturam as características-chave do processo interpretativo, (2) reconhecem cada ato de compreensão como uma interpretação e (3) são capazes de distinguir entre interpretações, compreensões ou significados mais ou menos legítimos ou objetivos.

A hermenêutica filosófica tem suas origens teóricas na obra do filólogo alemão do século XIX Friedrich Ast (1778–1841). A obra de Ast, “Elementos Básicos de Gramática, Hermenêutica e Crítica” (Grundlinien der Grammatik, Hermeneutik und Kritik), de 1808, contém uma articulação inicial dos principais componentes do que mais tarde ficou conhecido como o círculo hermenêutico. Ast escreveu que o princípio básico de toda compreensão consiste num processo cíclico de chegar a entender as partes através do todo e o todo através das partes. Este princípio básico decorre, para Ast, da “unidade original de todo ser” (Ast 1808: Seção 72) ou o que Ast chamou de espírito ou Geist. (O Geist de Ast é comumente entendido como tendo sido derivado do conceito de Volkgeist de Herder.)

Entender um texto, para Ast, é o mesmo que determinar seu significado interno ou espírito, seu próprio desenvolvimento interno, através de uma circularidade da razão, uma relação dialética entre as partes de uma determinada obra e o todo (Ast 1808: Seção 76). O que Ast chamou de hermenêutica do espírito envolvia, por sua vez, o desenvolvimento de uma compreensão do espírito do escritor e de sua época e uma tentativa de identificar a única ideia, ou Grundidee, que unifica um determinado texto e fornece esclarecimentos sobre a relação do todo com as partes e das partes com o todo. Neste processo, para Ast, incumbe ao intérprete permanecer sempre ciente do período histórico em que o texto se situa.

Friedrich August Wolf (1759–1824) foi contemporâneo de Ast e também filólogo. Sua “Conferência sobre a Enciclopédia de Estudos Clássicos” (Vorlesung über die Enzyklopädie der Altertumswissenschaft), de 1831, definiu a hermenêutica como a ciência das regras através das quais o significado dos signos é determinado. Essas regras apontavam, para Wolf, para um conhecimento da natureza humana. Tanto os fatos históricos quanto os linguísticos têm um papel adequado no processo interpretativo, de acordo com Wolf, e nos ajudam a entender o todo orgânico que é o texto. Para Wolf, no entanto, a principal tarefa da hermenêutica não é a de identificar o Grundidee ou ponto focal do texto, à la Ast, mas sim o objetivo bem mais prático de alcançar um alto nível de comunicação ou diálogo entre o intérprete do texto e o autor, bem como entre o intérprete e aqueles a quem o texto deve ser explicado.

Embora aspectos da hermenêutica de Ast e Wolf tenham sobrevivido na hermenêutica filosófica contemporânea, a hermenêutica de ambos é geralmente entendida como relacionada ao que mais tarde ficou conhecido como hermenêutica regional ou local, ou hermenêutica aplicável a campos específicos de estudo. Friedrich D. E. Schleiermacher (1768–1834), por outro lado, foi o primeiro a definir a hermenêutica como a arte da compreensão em si, independentemente do campo de estudo (Palmer 1969: 84). Para Schleiermacher, subjacente às regras específicas de interpretação dos vários campos de estudo, e fundamentando-as, existe uma unidade afiançada pelo fato de que toda interpretação ocorre na linguagem (ibid.). Schleirmacher pensava que uma hermenêutica geral, e não regional [ou local], era possível, e que tal hermenêutica geral consistiria nos princípios para a compreensão da linguagem (ibid.). Para ele, a interpretação ou compreensão adequada não consistiria somente em apreender os pensamentos do autor, mas compreender de que forma a linguagem na qual os pensamentos ocorrem afeta, restringe e conforma esses mesmos pensamentos. Schleiermacher chama nossa atenção filosófica para o fato de que quando dizemos que entendemos algo, estamos essencialmente apenas comparando-o com algo que já sabemos (fundamentalmente, uma determinada linguagem). Aqui, entender é colocar algo dentro de um contexto pré-existente de inteligibilidade. Para Schleiermarcher, portanto, a compreensão é decididamente circular. Isso não equivale à conclusão de que a compreensão é impossível. Na verdade, a circularidade é como a compreensão se define. A compreensão exige necessária e estruturalmente que o texto e o intérprete compartilhem a mesma linguagem e o mesmo contexto de inteligibilidade.

Wilhelm Dilthey (1833–1911) continuou a busca de Schleiermacher pela compreensão na compreensão, mas procurou fazê-lo dentro do contexto específico do que ele chamou de ciências humanas, ou Geisteswissenschaften (Dilthey 1883). Os métodos do conhecimento científico, para Dilthey, eram muito “reducionistas e mecanicistas” para capturar a plenitude dos fenômenos criados pelo homem (Palmer 1969, 100). As ciências humanas, ou humanidades, exigiam dois processos particulares: (1) o desenvolvimento de uma apreciação pelo papel da consciência histórica em nossas concepções de significado e (2) o reconhecimento de que os fenômenos criados pelo homem são gerados a partir da “própria vida”, e não por meio de teorias ou conceitos (ibid.).

Na teoria hermenêutica contemporânea, o processo (1) é frequentemente referido como a historicidade (Geschichtlichkeit) do significado e o processo (2) como filosofia da vida (Lebensphilosophie) a visão fenomenológica de que o significado só pode ser gerado e a compreensão só pode ser obtida por meio da experiência vivida (Erlebnis), e não pelo exame de conceitos, teorias ou outros métodos puramente idealistas ou racionais (Nenon 1995).

Enquanto Dilthey observou que os métodos categóricos de compreensão úteis na ciência eram inadequados para uso nas ciências humanas, Martin Heidegger (1889–1976) mudou toda a empreitada hermenêutica de um foco epistemológico para um ontológico. Essa mudança é geralmente referida como a virada ontológica na hermenêutica (Kisiel 1993; Tugendhat 1992). Para Heidegger, em sua obra clássica “Ser e Tempo” (1962/2008), a questão da natureza da compreensão (Verstehen) só poderia ser respondida se respondermos primeiro à questão sobre a natureza do que significa ser. Heidegger propôs, assim, descobrir a natureza do ser no ser. Para fazer isso, Heidegger foi às próprias coisas (die Sachen selbst), de acordo com a metodologia fenomenológica que aprendeu com seu professor, Edmund Husserl (1859–1938). Heidegger chamou sua investigação fenomenológica sobre a natureza do ser no ser de ontologia fundamental. Ele também a chamou de ontologia hermenêutica, o que destaca que, para Heidegger, ser e interpretar estão inextricavelmente ligados quase que ao ponto de identidade.

A ideia de que, para Heidegger, ser e interpretação eram quase o mesmo fenômeno é provavelmente melhor capturada em dois dos conceitos-chave de Heidegger: Dasein e ser-no-mundo. Dasein pode ser traduzido aproximadamente como o modo humano de ser, mas sua tradução literal é “estar lá” ou “estar aqui”. Com esses conceitos, Heidegger está tentando enfatizar que o modo humano de ser é interativo tanto com o ambiente quanto com os outros no mundo. Ser humano é ser ativo e estar envolvido no seu mundo e com outras pessoas, em vez de estar em um determinado estado estático. Para Heidegger, não existem sujeitos humanos isolados, separados do mundo, e o modo humano de ser não é adequadamente caracterizado pela distinção filosófica tradicional entre sujeito e objeto, ou pela distinção entre sujeito e outros sujeitos (ou mentes e outras mentes, como essa polaridade às vezes é descrita) que se origina nas “Meditações” de Descartes (1596–1650). Em vez disso, ser, para os humanos, é ser-no-mundo, um termo que visa destacar a falta de barreiras claras entre os seres humanos e os contextos, ou esquemas de inteligibilidade, nos quais eles se encontram (Dreyfus & Wrathall 2002). De acordo com Heidegger, o que isso significa para o fenômeno da compreensão é que compreender é sempre uma função de como um determinado ser humano está no mundo, ou seja, uma função do contexto. A relação entre ser, ou contexto, e compreensão é uma relação recíproca. A compreensão, para Heidegger, nos revela o que significa ser, e quem somos afeta como entendemos as coisas. Em outras palavras, a compreensão, para Heidegger, não é uma espécie de apreensão de como as coisas realmente são, como a tradição filosófica canônica e moderna pode pensar, mas sim o processo de apreciar a maneira como as coisas estão lá para uma determinada pessoa, ou grupo de pessoas, no mundo. Além disso, a maneira como as coisas estão lá para nós, no mundo, é uma função principalmente de práticas sociais e culturais compartilhadas. Entender algo, então, é ser capaz de colocá-lo dentro de um esquema de inteligibilidade que é gerado pelas práticas sociais e culturais compartilhadas nas quais alguém se encontra (Dreyfus & Wrathall 2005).

Em sua obra “Verdade e Método” (1975), Hans-Georg Gadamer (1900–2002) retoma o conceito de Heidegger do círculo hermenêutico da compreensão que está no cerne do que significa ser humano no mundo, mas embora seja verdade que Gadamer trabalha dentro do paradigma heideggeriano na medida em que aceita plenamente a virada ontológica na hermenêutica, o próprio projeto declarado de Gadamer em “Verdade e Método” é chegar à questão da compreensão na compreensão. Especificamente, Gadamer observa que os caminhos tradicionais para a verdade são equivocados e contrários à realidade de que ser e compreensão interpretativa estão interligados. Nos caminhos tradicionais para a verdade, verdade e método estão em desacordo. Os métodos usados ​​na tradição ocidental não nos levarão à verdade. Esses métodos são a interpretação crítica, ou hermenêutica tradicional, e o foco do Iluminismo na razão como o caminho para a verdade. Ambos os métodos têm o que Gadamer chama de preconceito contra o preconceito. Ou seja, ambos deixam de reconhecer o papel do intérprete na determinação da verdade. A interpretação crítica tradicional é inadequada porque busca a intenção original ou o significado original, ou seja, apega-se à ficção de que o significado do texto pode ser encontrado na intenção original do autor ou nas palavras do texto. O foco do Iluminismo na razão é um caminho igualmente inadequado para a verdade porque mantém a distinção sujeito/objeto e pensa que o caminho para a verdade é através do método científico, ambos equivocados.

Para Gadamer, a palavra preconceito [pré-conceito], ou Vorurteile, significa a mesma coisa que a pré-estrutura de compreensão de Heidegger. Gadamer afirma que a conotação negativa de hoje do preconceito só se desenvolve com o Iluminismo (Schmidt 2006: 100). O significado original de preconceito, de acordo com Gadamer, não era nem positivo nem negativo, mas simplesmente uma visão que temos, consciente ou inconscientemente. Todo entendimento começa necessariamente com preconceitos. Os preconceitos do intérprete, para Gadamer, em vez de serem uma barreira à verdade, na verdade facilitam sua geração. Os preconceitos do intérprete — mantidos como resultado da facticidade pessoal do intérprete — não apenas contribuem para a geração da questão que está sendo levantada em primeira instância, mas, se levados em consideração no caminho para a verdade, são capazes de ser criticamente avaliados e revisados, com o resultado de que a qualidade da interpretação é melhorada. Além disso, os preconceitos são legítimos ou ilegítimos. Preconceitos legítimos levam à compreensão. Preconceitos ilegítimos não. Um dos objetivos de “Verdade e Método” é fornecer uma base teoricamente sólida para distinguir entre preconceitos legítimos e ilegítimos (Schmidt 2006: 102). Compreensão ou significado, para Gadamer, é uma função de preconceitos legítimos.

O modelo de como a compreensão realmente opera, para Gadamer, é a conversa ou o diálogo. Em um diálogo autêntico, diz Gadamer, a compreensão ou o significado é algo que ocorre dentro de uma tradição, que é apenas um conjunto de pressupostos e crenças culturais. Uma tradição é uma visão de mundo (Weltanschauung), um sistema de inteligibilidade, uma estrutura de ideias e crenças por meio da qual uma determinada cultura experimenta e interpreta o mundo. Uma tradição, neste sentido gadameriano, é a neta teórica do que Ast chamou de Grundidee de um determinado texto, ou uma ideia que o unificou. Para Gadamer, um preconceito legítimo é um preconceito que sobrevive ao longo do tempo, tornando-se eventualmente uma parte central de uma determinada cultura, uma parte de sua tradição. Compreensão ou significado é um evento, um acontecimento, cuja substância é uma fusão deste conceito estritamente definido de tradição e os preconceitos do intérprete. Nesse sentido, o entendimento não é querido pelos participantes. Se fosse, o diálogo não seria autêntico e o entendimento ou significado nunca poderia ser alcançado. Em vez disso, a conversa ou diálogo quer o caminho para a compreensão. A própria coisa revela a verdade.

No decorrer do diálogo, e como resultado direto e orgânico das coisas que estão sendo discutidas pelos participantes específicos da conversa, surge uma questão. Essa questão se torna o assunto em questão, o tópico da conversa. À medida que a conversa prossegue, a resposta também aparecerá e será uma função da “fusão de horizontes” entre as perspectivas ou preconceitos dos participantes da conversa (Gadamer 1975). Esta fusão é compreensão/significado. É a resposta à pergunta e a coisa mais próxima da verdade. Desta forma, tanto as próprias coisas quanto os participantes da conversa juntos geram o tópico da conversa (a pergunta) quanto a resposta. Juntas, as coisas e os participantes da conversa geram a verdade do assunto. Além disso, tudo isso ocorre dentro de uma tradição que confere legitimidade e peso ao significado gerado.

É importante, para Gadamer, que o caminho para a verdade seja fenomenológico, ou seja, devemos ir às próprias coisas; e que o caminho seja também hermenêutico, pois reconhece que o preconceito contra o preconceito é inevitável. Todo intérprete chega a um texto com o que Gadamer chama de um determinado horizonte ou conglomerado de preconceitos que é análogo a um mundo heideggeriano ou pré-estrutura de compreensão, e que foi descrito como um determinado esquema de inteligibilidade no qual um intérprete se encontra. Um horizonte gadameriano é um sistema compartilhado de práticas sociais e culturais que fornece o escopo do que aparece como significativo para um intérprete, bem como de como as coisas aparecem. Retomando o círculo hermenêutico, Gadamer sustenta que o ato de compreensão é sempre interpretativo.

Outro elemento-chave da hermenêutica filosófica gadameriana é a insistência de Gadamer de que a interpretação, a compreensão ou o significado não podem ocorrer fora da aplicação prática. Para Gadamer, a interpretação é mais do que mera explicação. É mais do que mera exegese. Para além destas coisas, a interpretação de um dado texto — e, importante, tudo é texto — ocorre sempre e necessariamente através da lente das preocupações e interesses presentes. O intérprete sempre e necessariamente, em outras palavras, chega à mesa da conversa ou diálogo interpretativo com uma preocupação presente que está fundamentada em um dado horizonte epistemológico ou metafísico no qual o intérprete habita. Desta forma, para Gadamer, Aristóteles estava certo ao afirmar que a compreensão ocorre necessariamente através do raciocínio prático, ou phronesis. Para Gadamer, “[a] aplicação não significa primeiro entender um dado universal em si mesmo e depois aplicá-lo a um caso concreto. É a própria compreensão do universal… em si” (Gadamer 1975). Que a phronesis seja central para a hermenêutica de Gadamer não é algo controverso (Arthos 2014).

Mas, ainda mais importante do que isso, para Gadamer, a distância no tempo entre o intérprete e o texto não é uma barreira à compreensão, mas sim o que a possibilita. A distância temporal entre texto e interpretação é uma “condição positiva e produtiva que possibilita a compreensão” (Gadamer 1975). Quando buscamos interpretar um texto, estamos tentando descobrir não a intenção original do autor, mas “o que o texto tem a nos dizer” (Schmidt 2006: 104), e isso é função da extensão em que a intenção original do autor e o significado gerado pelo contexto contemporâneo e o intérprete contemporâneo concordam, ou seja, a extensão em que os horizontes do autor e o intérprete instantâneo se fundem ou se misturam. (Gadamer discute especificamente a hermenêutica jurídica em “Verdade e Método”. Ele escreve que existem duas maneiras comumente entendidas de determinar o significado na lei. A primeira é quando um juiz decide um caso. Nesse cenário, o juiz deve necessariamente levar em consideração os fatos presentes na decisão. O segundo é o caso do historiador jurídico. Neste segundo cenário, embora possa parecer que a tarefa é descobrir o significado da lei considerando apenas a história da lei, a realidade é que é impossível para o historiador jurídico entender a lei apenas em termos de sua origem histórica com exclusão de considerações sobre o efeito contínuo da lei. Em outras palavras, as determinações de significado na lei, assim como no caso de todas as determinações de significado, envolvem necessariamente, e em todos os momentos, a aplicação prática.)

A hermenêutica filosófica pós-Gadamer assume muitas formas, mas pode-se dizer que começa com o trabalho de Emilio Betti (1890–1968). Encontrando o que ele viu como um relativismo epistemológico na hermenêutica filosófica de Gadamer, Betti retorna à hermenêutica geral de Schleiermacher e Dilthey e resiste à maré da virada ontológica (Pinton 1972, 1973). Betti era um teórico jurídico que tentou trazer o projeto hermenêutico de volta a um projeto de interpretação sem referência ao modo humano de ser. Betti acreditava e buscava a compreensão ou interpretação objetiva, ou Auslegung, ao mesmo tempo em que enfatizava que os textos refletiam as intenções humanas. Assim, ele pensava ser possível determinar o significado do texto replicando o processo criativo original, a linha de pensamento, por assim dizer, do autor do texto. Betti acreditava na autonomia do texto (Bleicher 1980: 58). A interpretação objetiva era possível, para ele, mas essa objetividade era baseada tanto em termos de existência epistemológica a priori, à la formas de Platão, quanto de coerência histórica e cultural (Bleicher 1980: 28–29).

Jürgen Habermas (1929-), como Emilio Betti, busca a compreensão objetiva (Habermas 1971), mas, ao contrário de Betti e em concordância com Gadamer, acredita que a hermenêutica não é e não pode ser apenas uma questão de tentar encontrar o melhor método de interpretação. Em vez disso, a objetividade da interpretação está fundamentada em algo que Habermas chamou de ação comunicativa, uma espécie de diálogo gadameriano modificado pelo reconhecimento de que os desequilíbrios de poder frequentemente distorcem o que passa por compreensão coletiva, e que o consenso real — a coisa mais próxima disponível à verdade e/ou compreensão objetiva — só pode ser obtido onde esse consenso foi gerado imparcialmente e em circunstâncias onde o acordo não foi restringido (O conceito de ação comunicativa de Habermas também é conhecido como práxis comunicativa ou racionalidade comunicativa.) Enquanto a hermenêutica filosófica de Gadamer fundamentava uma espécie de quase objetividade na autoridade da tradição, Habermas considerou essa abordagem insuficientemente capaz de orientar a libertação e o progresso social. A tarefa da hermenêutica não é meramente desconstruir o processo de compreensão e/ou de alguma forma fundamentar essa compreensão no método à la Betti ou na tradição à la Gadamer, mas estabelecer regras para determinar a validade universal nas ciências sociais no caminho para a mudança social. Desta forma, a hermenêutica habermasiana afirma que a hermenêutica pode permitir, e permite, o tipo de julgamentos de valor dos quais alguns críticos dizem que a hermenêutica é incapaz.

* Tradução não-oficial, para fins didáticos, de um trecho de:

Botts, Tina Fernandes. Legal Hermeneutics. Internet Encyclopedia of Philosophy, 2015. Disponível em < https://iep.utm.edu/leg-herm/>. Acesso em 9 de agosto de 2024.

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Henrique Napoleão Alves
Henrique Napoleão Alves

Written by Henrique Napoleão Alves

Ph.D. in Law | Lawyer, lecturer, researcher | Views in personal capacity | Advogado e professor. Opiniões em caráter individual.

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