Paulo Freire e o Jogo dos Dez Gols
O Jogo dos Dez Gols é uma dinâmica muito simples e instigante usada pelo educador brasileiro Paulo Freire. Através dela, pessoas muito humildes são lembradas da sua própria inteligência, do seu valor.
Separei alguns trechos da obra “Pedagogia da Esperança” nos quais Freire relata essa dinâmica.
Você não precisa concordar com o autor em tudo o que ele disse ou pensou para apreciar esse relato, que é muito interessante. Faço essa ressalva porque nem sempre o nosso ambiente favorece a leitura de quem é visto como divergente. Seria bom se esse ambiente fosse mais tolerante… Boa leitura.
Eu me lembro agora de uma visita que fiz, com um companheiro chileno, a um assentamento da reforma agrária, algumas horas distante de Santiago. Funcionavam à tardinha vários “círculos de cultura” e fomos lá para acompanhar as atividades. No segundo ou terceiro círculo a que chegamos, senti um forte desejo de dialogar com o grupo de camponeses.
Pedindo licença ao educador que coordenava a discussão, perguntei se aceitava uma conversa comigo. Depois da aceitação, começamos um diálogo vivo, com perguntas e respostas de mim e deles a que, porém, se seguiu, rápido, um silêncio desconcertante.
Dentro do silêncio, recordava experiências anteriores no Nordeste brasileiro e adivinhava o que aconteceria. “Desculpe, senhor”, disse um deles, “que estivéssemos falando. O senhor é que podia falar porque o senhor é o que sabe. Nós, não”.
Ensinar e aprender são momentos de um processo maior — o de conhecer, que implica re-conhecer.
“Muito bem”, disse em resposta à intervenção do camponês. “Aceito que eu sei e vocês não sabem.”
“De qualquer forma, gostaria de lhes propor um jogo que, para funcionar bem, exige de nós absoluta lealdade. Vou dividir o quadro-negro em dois pedaços, em que irei registrando, do meu lado e do lado de vocês, os gols que faremos eu, em vocês; vocês, em mim.”
“O jogo consiste em cada um perguntar algo ao outro. Se o perguntado não sabe responder, é gol do perguntador. Começarei o jogo fazendo uma primeira pergunta a vocês.”
A essa altura, precisamente porque assumira o “momento” do grupo, o clima era mais vivo do que quando começáramos, antes do silêncio.
Primeira pergunta:
— Que significa a maiêutica socrática?
Gargalhada geral e eu registrei o meu primeiro gol.
— Agora cabe a vocês fazer a pergunta a mim — disse.
Houve uns cochichos e um deles lançou a questão:
— Que é curva de nível?
Não soube responder. Registrei um a um.
— Qual a importância de Hegel no pensamento de Marx?
Dois a um.
— Para que serve a calagem do solo?
Dois a dois.
— Que é um verbo intransitivo?
Três a dois.
— Que relação há entre curva de nível e erosão?
Três a três.
— Que significa epistemologia?
Quatro a três.
— O que é adubação verde?
Quatro a quatro.
Assim, sucessivamente, até chegarmos a dez a dez.
Ao me despedir deles lhes fiz uma sugestão:
“Pensem no que houve esta tarde aqui. Vocês começaram discutindo muito bem comigo. Em certo momento ficaram silenciosos e disseram que só eu poderia falar porque só eu sabia e vocês não. Fizemos um jogo sobre saberes e empatamos dez a dez. Eu sabia dez coisas que vocês não sabiam e vocês sabiam dez coisas que eu não sabia. Pensem sobre isto”.
De volta para casa recordava a primeira experiência que tivera muito tempo atrás na Zona da Mata de Pernambuco, tal qual a que acabara de viver. Depois de alguns momentos de bom debate com um grupo de camponeses o silêncio caiu sobre nós e nos envolveu a todos.O discurso de um deles foi o mesmo. A tradução exata do discurso do camponês chileno que ouvira naquele fim de tarde.
— Muito bem — disse eu a eles. — Eu sei. Vocês não sabem. Mas por que eu sei e vocês não sabem?
Aceitando o seu discurso, preparei o terreno para minha intervenção. A vivacidade brilhava em todos. De repente a curiosidade se acendeu. A resposta não tardou.
— O senhor sabe porque é doutor. Nós, não.
— Exato, eu sou doutor. Vocês não. Mas, por que eu sou doutor e vocês não?
— Porque foi à escola, tem leitura, tem estudo e nós, não.
— E por que fui à escola?
— Porque seu pai pôde mandar o senhor à escola. O nosso, não.
— E por que os pais de vocês não puderam mandar vocês à escola?
— Porque eram camponeses como nós.
— E o que é ser camponês?
— É não ter educação, posses, trabalhar de sol a sol sem direitos, sem esperança de um dia melhor.
— E por que ao camponês falta tudo isso?
— Porque Deus quer.
— E quem é Deus?
— É o Pai de nós todos.
— E quem é pai aqui nesta reunião?
Quase todos de mão para cima, disseram que o eram. Olhando o grupo todo em silêncio, me fixei num deles e lhe perguntei:
— Quantos filhos você tem?
— Três.
— Você seria capaz de sacrificar dois deles, submetendo-os a sofrimentos para que o terceiro estudasse, com vida boa, no Recife? Você seria capaz de amar assim?
— Não!
— Se você — disse eu –, homem de carne e osso, não é capaz de fazer uma injustiça desta, como é possível entender que Deus o faça? Será mesmo que Deus é o fazedor dessas coisas?
Um silêncio diferente, completamente diferente do anterior, um silêncio no qual algo começava a ser partejado. Em seguida:
— Não. Não é Deus o fazedor disso tudo.