Para quem ousa advogar
Um dos grandes advogados brasileiros, o Dr. Sobral Pinto, disse certa vez que “a advocacia não é profissão para covardes.”
Na nossa terra, há quem ouse advogar no exato sentido dessa frase.
O famoso Caso Olga Benário foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal em 17 de junho de 1936.
A decisão é classificada pelo próprio Tribunal — corretamente — como um de seus julgamentos históricos.
Militante comunista de origem alemã e judia, Olga Benário era a mulher de Luís Carlos Prestes, liderança da Intentona Comunista. Estava presa há alguns meses. Na prisão, descobriu-se que estava grávida — “grávida a olho nu”, nas palavras do Barão de Itararé.
Mesmo assim, o governo brasileiro queria expulsá-la para a Alemanha nazista.
O que as forças de Hitler fariam com uma mulher que, além de judia, era comunista? O que poderia ocorrer com sua gestação?
O governo não se importava.
O Instituto dos Advogados, segundo informações do jornalista Fernando Morais, tentou designar o Dr. Dyonisio da Silveira para defender Olga da expulsão.
O Dr. Dyonisio recusou-se a aceitar o encargo.
Na nossa terra, também há advogados como o Dr. Dyonisio.
Olga Benário, que também era chamada de Maria Prestes, manifestou à polícia por escrito o seu desejo de ver-se representada pelo advogado Heitor Lima.
Lima discordava frontalmente da ideologia política de Olga; Fernando Morais o descreveu como “um liberal sem a mais remota ligação com as ideias dos revoltosos”.
Isso não o impediu de aceitar a incumbência no mesmíssimo dia.
Você, pessoa amiga que me lê, precisa compreender bem o contexto dessa atitude.
Eram tempos muito difíceis, tempos de “escalada autoritária”, nas palavras do historiador Boris Fausto. O aceite de Lima foi, inquestionavelmente, um ato de grande coragem.
Eu vou te contar como termina essa história num instante. Antes, te convido a ler a carta de aceite que ele escreveu em 29 de maio de 1936.
Na nossa terra, também há advogados como o Dr. Heitor.
“Rio de Janeiro, 29 de maio de 1936.
Senhor Capitão Affonso de Miranda Correia Del. de Segurança Política e Social.
A resposta ao vosso ofício comporta três ordens de considerações.
Em primeiro lugar, a conduta do governo facilitando a defesa dos indiciados em crimes contra a ordem política e social, quando o Estado de Guerra lhe facilitaria, com aparências de legitimidade, a coarcitação do direito de defesa, deve ser posta em relevo. Quero assinalar esse fato, que satisfaz a consciência jurídica nacional.
Em segundo lugar, se, salvo casos especialíssimos, ao advogado não é lícito recusar o seu ministério a quaisquer acusados, por mais horrendo que seja o delito a eles atribuído, mais imperativo, instante e compulsório é o dever de assistência, quando se trata de presos incomunicáveis, feridos pelo repúdio geral, numa situação adequada à infringência das fórmulas sem cuja observância toda condenação será iníqua, porque não representará a dedução lógica e jurídica dos debates livres entre acusação e defesa.
Sobreleva ainda que, num período em que ao advogado não se outorgam imunidades, a recusa do patrocínio redundaria em ato de covardia em terceiro lugar, e finalmente, é uma mulher que invoca o meu nome. Bastaria tal circunstância para que eu, fiel à atitude de combate pela mitigação do infortúnio feminino na face da terra, e empenhado em resgatar, em parcela mínima embora, os crimes da civilização masculina contra a mulher, nos quais como homem tenho a minha parte de responsabilidade, bastaria tal circunstância, repito, para que eu acudisse ao apelo. Leio, porém, nos jornais, que a indiciada se prepara para o acontecimento culminante na vida da mulher: a maternidade. Isto portanto, nimbada de uma auréola que a torna, por assim dizer, sagrada.
Quaisquer, pois, que fossem os riscos da tarefa, eu os afrontaria, dedicando-me a ela enquanto encontrar na lei recursos para o desempenho da minha missão.
Saudações,
Heitor Lima.”
Olga estava na iminência de ser expulsa. Heitor Lima teve que agir rápido. Três dias depois de aceitar defendê-la, interpôs um Habeas Corpus no STF.
Aqueles eram tempos tão difíceis que até mesmo o Habeas Corpus havia sido suspendido.
Um advogado servia, naqueles tempos, o ofício de Ministro da Justiça do governo Vargas. E assinou o decreto de suspensão logo depois do presidente.
Seu nome: Vicente Rao. Um jurista celebrado.
A cultura jurídica tem muitas ambiguidades.
Na nossa terra, também há advogados como o Dr. Vicente.
Apesar da suspensão de uma garantia tão fundamental, Lima fez a sua melhor tentativa. E adotou uma estratégia engenhosa.
Ao invés de submeter um Habeas Corpus comum, pedindo a liberdade de sua cliente, Lima interpôs um Habeas Corpus para que ela continuasse presa.
A petição escrita por Heitor Lima reflete o seu tempo, como não poderia deixar de ser.
Como texto advocatício, é brilhante: argumentos bem construídos, e o difícil equilíbrio entre denunciar arbitrariedades com a ênfase que elas merecem e, ao mesmo tempo, não ser hostil com as autoridades que poderiam evitar a expulsão de sua cliente.
Heitor Lima questionou a expulsão de diferentes formas.
Destacou que à sua cliente haviam sido atribuídos “vários delitos contra a ordem política e social” que precisavam ser processados pela autoridade competente: o Poder Judiciário.
A expulsão de “estrangeiros perigosos”, defendeu Lima, não poderia ser usada como expediente para fazer com que alguém escapasse do processo judicial no país.
“Maria Prestes foi presa como delinquente, indiciada em fatos punidos com grande rigor. A polícia, ou o Ministério da Justiça, a que é subordinada, não faz mistério de que contra a paciente coligiu elementos de suma importância, e tem como certa a sua condenação. Se a polícia não exagera, ela será condenada. Mas condenada por qual autoridade? Pela única investida das funções de julgar: a autoridade judiciária.”
O advogado também apelou a razões jurídicas e morais relacionadas à gravidez de Olga Benário.
Enfatizou que o Decreto sobre expulsões não dizia nada sobre a expulsão de uma mulher gestante, e que essa lacuna não deveria ser interpretada contra a acusada.
Defendeu que a expulsão seria contrária à pessoalidade da pena, porque puniria tanto Olga quanto o ser que se desenvolvia no seu ventre.
Invocou a proteção jurídica ao nascituro e à maternidade.
Denunciou as condições do cárcere.
E questionou duramente as bases do próprio processo de expulsão.
“Nos termos do art. 141 [da Constituição], ‘é obrigatório, em todo o território nacional, o amparo à maternidade e à infância […]’. A expulsão neste período delicado para a vida da gestante e do feto, a deslocação, sem destino certo, de uma mulher em tal situação, reduzida ao extremo grau da pobreza, equivaleria ao mais eficaz concurso para matá-la. […] Como conciliar o texto constitucional, que torna obrigatório o amparo à maternidade, com o decreto de expulsão, que equivaleria agora ao sacrifício da maternidade? Sobre todas deve primar a lei que traduz um princípio de humanidade.”
“[S]e o Sr. Getúlio Vargas tivesse conhecimento da situação de Maria Prestes no cárcere, ordenaria providências imediatas para que se modificasse o regime desumano a que está submetida, sem qualquer vantagem para a ordem pública e a segurança nacional. A impropriedade e a deficiência da alimentação; a falta de cuidados higiênicos, tanto mais indispensáveis quando se trata de uma gestante; a interdição de qualquer leitura, seja livro ou jornal, o que constitui verdadeiro martírio para uma mulher de inteligência cultivada — todas essas e outras mortificações já reduziram doze quilos no peso de Maria Prestes. Não constituirá isso uma criminosa provocação de aborto?
Não é crível que essas monstruosidades corram por conta do Dr. Aloysio Neiva, diretor do estabelecimento. Quem conhece o seu coração compassivo não lhe fará a injúria de responsabilizá-lo por um aborto criminoso na Casa de Detenção. Quando, no recesso do seu lar feliz, dispuser de um minuto para pensar nas desditas alheias, recorde-se o Dr. Aloysio Neiva de que […] a poucos passos sofre uma mulher cuja vida se concentra hoje na vida do ser cujo coração já palpita no fundo do seu ser, e que tem direito a um duplo respeito: o devido à mulher que vai ser mãe, e o devido à mais infeliz das mães.”
“A Colendíssima Corte Suprema, é claro, não vai julgar da conveniência ou da oportunidade da medida coercitiva que ameaça a paciente: examiná-la-á apenas sob o ângulo da legalidade, ou constitucionalidade. No processo de expulsão há somente três depoimentos de investigadores de polícia, ouvidos na ausência da acusada; os investigadores limitam-se a informar que na Delegacia de Segurança Política a expulsanda é tida por agitadora, e por isso os depoentes afirmam que ela constitui perigo para a segurança nacional. Nada mais. Não seria preferível o decreto de expulsão puro e simples, sem essa simulação de respeito às fórmulas jurídicas? A que fica reduzido o preceito constitucional assegurador da ampla defesa?”
“Se o habeas-corpus for concedido, que sucederá? Precisa e incomunicável continuará a paciente. Prosseguirá o inquérito no qual a polícia vê fortes elementos para a condenação. O poder judiciário, tomando conhecimento das provas que a polícia afirma irrefragáveis contra a paciente, condená-la-á. Ficará assim Maria Prestes reduzida à condição de nada fazer de nocivo à ordem pública.”
Recebida a petição, o Ministro Relator solicitou informações sobre o processo de expulsão.
Vicente Rao, o Ministro da Justiça, foi sucinto.
Afirmou que Olga Benário “acha-se à disposição deste Ministério para ser expulsa do território nacional, por ser um elemento perigoso à ordem pública e nocivo aos interesses do país”.
E recordou que a garantia do habeas corpus encontrava-se suspensa “por necessidade de segurança nacional”.
Dois dias depois, em 17 de junho de 1936, o STF decidiu o Habeas Corpus.
A decisão?
“Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus impetrado pelo Dr. Heitor Lima em favor de Maria Prestes, que ora se encontra recolhida à Casa de Detenção, afim de ser expulsa do território nacional, como perigosa à ordem pública e nociva aos interesses do país.
A Corte Suprema, indeferindo não somente a requisição dos autos do respectivo processo administrativo, como também o comparecimento da paciente e bem assim a perícia médica afim de constatar o seu alegado estado de gravidez, e
Atendendo a que a mesma paciente é estrangeira e a sua permanência no país compromete a segurança nacional, conforme se depreende das informações prestadas pelo Exmo. Sr. Ministro da Justiça;
Atendendo a que, em casos tais não há como invocar a garantia constitucional do habeas corpus, à vista do disposto no art. 2 do decreto n. 702, de 21 de março deste ano;
Acordam por maioria, não tomar conhecimento do pedido.
Custas pelo impetrante.
Corte Suprema, 17 de junho de 1936.
- E. Lins, presidente. — Bento de Faria, relator.
DECISÃO
Como consta da ata a decisão foi a seguinte: Não conheceram do pedido, contra os votos dos senhores ministros Carlos Maximiliano, Carvalho Mourão e Eduardo Espinola, que conheciam e indeferiam.”
Após a derrota no STF, Heitor Lima fez ainda uma derradeira tentativa: um apelo à consciência de dona Darcy Vargas, esposa de Getúlio.
Não funcionou.
Olga Benário foi expulsa para a Alemanha nazista.
Vicente Rao assinou, juntamente com o presidente Getúlio Vargas, o ato de expulsão.
Na Alemanha, ficou presa numa prisão da Gestapo, a polícia nazista. Ali, deu a luz a sua filha Anita Prestes, com quem ficou até o fim do período de amamentação.
Pressões de uma campanha internacional fizeram com que a pequena Anita fosse entregue à avó, Dona Leocádia. Benário continuou presa. Foi transferida para o campo de concentração de Lichtenburg, depois para o campo de concentração de Ravensbrück.
Em 1942, foi enviada para o seu destino final: o campo de extermínio de Bernburg.
Os nazistas a executaram numa câmara de gás.
Ela tinha 34 anos de idade.
No Habeas Corpus, Heitor Lima tinha pedido que as despesas processuais fossem aliviadas porque sua cliente não tinha nenhum recurso.
Suas palavras, escritas antes do julgamento, mostram a plena — e premonitória — consciência que ele tinha a respeito da importância histórica daquele processo:
“O vestido que traz hoje é o mesmo que usava quando foi presa; e o pouco dinheiro, os valores e as roupas que a polícia apreendeu na sua residência, até hoje não foram restituídos.”
“Se a justiça masculina, mesmo quando exercida por uma consciência do mais fino quilate, como o insígne presidente da Corte Suprema, tolhe a defesa a uma encarcerada sem recursos, não há a história da civilização brasileira de recolher em seus anais judiciários esta nódoa: a condenação de uma mulher, sem que a seu favor se elevasse a voz de um homem no Palácio da Lei. O impetrante satisfará as despesas do processo.”
Em 1998, o então presidente do STF Celso de Mello declarou que o Tribunal errou no julgamento do Habeas Corpus 26155:
“O STF cometeu erros, este foi um deles, porque permitiu a entrega de uma pessoa a um regime totalitário como o nazista, uma mulher que estava grávida.”
A vida de Olga Benário, assim como qualquer outra vida humana, tem um valor intrínseco que não foi respeitado. O fato de Anita ter sobrevivido não muda as circunstâncias nas quais a decisão foi tomada. O Tribunal desconsiderou por completo a gestação. A decisão ignorou todas as razões apresentadas pelo advogado Heitor Lima. E todos os seus pedidos, inclusive um pedido de perícia sobre o estado da gravidez.
Os Ministros fizeram tudo isso com a assepsia da linguagem jurídica.
“Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus…” “Acordam por maioria, não tomar conhecimento do pedido.” “Custas pelo impetrante”.
Você precisa saber disso: o Direito é um instrumento.
É como um martelo. Pode ser usado para construir casas, para construir pontes. Pode ser usado para bater prego na carne viva, para destruir, para desfigurar.
Se você ousa advogar, espero que use bem a ferramenta.
Espero que saiba fazer isso mesmo quando… Espero que saiba fazer isso principalmente quando um poder arbitrário quiser o contrário.
E espero, por fim, que você consiga dar à humanidade a vitória que o colega Heitor Lima mereceu.
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Fontes:
- Boris Fausto. História do Brasil. 12 ed. São Paulo: EdUSP, 2006.
- Fernando Morais. Olga. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
- Habeas Corpus №26155, 3 de junho a 17 de junho de 1936 (Processo Integral).
- Pedro Paulo Filho. Grandes advogados, grandes julgamentos (no júri e noutros tribunais). São Paulo: OAB, 1989.
- Wikipedia, “Olga Benário Prestes”.