O que é hermenêutica filosófica? (Gerardo Primero) *
Para evitar mal-entendidos, considero que convém esclarecer os diferentes significados de “hermenêutica”. Em um sentido amplo, é o nome genérico para o conjunto de práticas relacionadas à interpretação de textos ou ações humanas, e para as reflexões teóricas sobre essas práticas. Em outro sentido, está associado a certas tradições teóricas e práticas sobre a interpretação, às quais o termo “hermenêutica” é aplicado com mais facilidade do que a outras propostas. Dentro desse segundo sentido, mais restrito que o anterior, o termo costuma se referir principalmente à “hermenêutica filosófica” de Gadamer. […]
A palavra “hermenêutica” foi proposta inicialmente em 1654 por Johann Konrad Dannhauer (1603–1666), e provém do verbo grego “hermeneuein”, que significa expressar em voz alta, explicar, interpretar ou traduzir. A tradução latina da palavra grega é “interpretatio”. Em geral, hermenêutica significa interpretação (Schmidt, 2006). As práticas interpretativas em si existem, no mínimo, desde a Grécia Antiga, mas o interesse em teorizar sobre este tema aumentou na Alemanha na época da Reforma, devido ao fato de que a responsabilidade de interpretar corretamente a Bíblia deslocou-se da Igreja para o indivíduo (Forster, 2007).
Johann August Ernesti (1707–1781) promoveu a transição da interpretação bíblica para uma hermenêutica mais geral, e influenciou Herder e Schleiermacher. Ele identificou várias dificuldades na tarefa interpretativa e incorporou a análise de vários aspectos extratextuais (e.g. o conhecimento do contexto histórico e geográfico).
Johann Gottfried Herder (1744–1803) baseou sua proposta em 3 princípios: (1) os significados são usos de palavras (e não referentes, formas platônicas ou ideias empiristas), (2) uma pessoa só pode pensar se tiver linguagem, e só pode pensar aquilo que pode expressar linguisticamente, (3) os significados baseiam-se em sensações perceptuais e afetivas, de forma direta ou por meio de extensões metafóricas.
Friedrich Schleiermacher (1768–1834) tentou unir em uma hermenêutica universal as diferentes teorias hermenêuticas específicas de cada disciplina. Ele considerou que a hermenêutica é a arte de compreender a linguagem falada e escrita, para evitar erros de compreensão. Dividiu a hermenêutica em duas práticas: a interpretação gramatical (que diz respeito à compreensão da linguagem) e a interpretação psicológica (que diz respeito ao pensamento do autor). Ambas as práticas dependem mutuamente para completar a tarefa da interpretação.
Wilhelm Dilthey (1833–1911) foi uma figura central no debate entre a filosofia neokantiana e o positivismo, no final do século XIX. O cerne do debate era se as ciências humanas (Geisteswissenschaften) são fundamentalmente diferentes em natureza e propósito das ciências naturais (Naturwissenschaften), como propunha o positivismo de Auguste Comte, John Stuart Mill e Adolphe Quetelet (para uma história do positivismo, ver Fuller, 2001). Em “Uma introdução às ciências humanas” (1883), Dilthey rejeitou a proposta do positivismo e tentou justificar filosoficamente uma metodologia específica para as ciências humanas. Para isso, distinguiu a explicação causal (Erklären), que ocorre nas ciências naturais, da compreensão (Verstehen), que ocorre nas ciências humanas. Os seres humanos, ao contrário dos objetos físicos, têm uma vida mental, mas como não podemos observá-la diretamente, devemos acessá-la por meio de suas manifestações empíricas. Como a linguagem é a expressão mais completa da vida mental, a hermenêutica (como compreensão interpretativa das expressões da linguagem) constitui o modelo dos processos de compreensão nas ciências humanas. Essas ideias incorporaram elementos de Schleiermacher e, ao mesmo tempo, influenciaram Heidegger.
Martin Heidegger (1889–1976) combinou a investigação fenomenológica de Husserl com a teoria hermenêutica de Dilthey e outras influências. A investigação fenomenológica consiste em descrever cuidadosamente nossa experiência, sem fazer julgamentos sobre o que a experiência implica. Heidegger argumentou que, antes de discutir nosso conhecimento das entidades, a filosofia deve começar com a autocompreensão interpretativa que temos de nós mesmos na vida. Mais tarde, Heidegger abandonou o termo “hermenêutica” e outros conceitos ocuparam um papel mais central em suas reflexões.
Hans-Georg Gadamer (1900–2002) denominou sua teoria de “hermenêutica filosófica”. Em seu livro “Verdade e Método” (1960), desenvolveu as ideias sobre a compreensão que Heidegger havia proposto em “Ser e Tempo” (1927). Gadamer denominou “preconceitos” as estruturas prévias que permitem a compreensão que Heidegger havia identificado. Mas em sua proposta, os preconceitos não estão necessariamente errados, pois há preconceitos positivos que levam a uma interpretação correta. A compreensão não pode escapar ao círculo hermenêutico, como Heidegger havia argumentado. A compreensão ocorre como uma fusão do horizonte passado do texto e do horizonte presente do intérprete.
A hermenêutica filosófica é um dos marcos teóricos utilizados na pesquisa qualitativa (Schwandt, 2000), juntamente com o interpretativismo e o construcionismo social. A distinção entre o interpretativismo e a hermenêutica filosófica reside na forma como concebem a noção de “compreensão interpretativa” (Verstehen). O interpretativismo a concebe como identificação empática (Dilthey), ou como compreensão do mundo intersubjetivo (Schutz, Garfinkel), ou como compreensão do jogo de linguagem ao qual pertence a ação (Winch, Giddens). Essas três concepções interpretativistas consideram que é possível compreender o significado subjetivo da ação de forma objetiva (Schwandt, 2000).
A compreensão tem duas dimensões: em um primeiro nível, é “o nome de um processo complexo pelo qual todos nós, em nossa vida cotidiana, interpretamos o significado de nossas próprias ações e das ações daqueles com quem interagimos” (Bernstein, 1976, p. 139); e, em um segundo nível, é “um método peculiar às ciências sociais” (Schutz, 1962, p. 57), o processo pelo qual o cientista social tenta compreender o processo primário (Giddens analisou a relação dinâmica entre ambas as dimensões com seu conceito de “dupla hermenêutica”). Nas tradições interpretativas, o intérprete toma como objeto aquilo que será interpretado e permanece externo ao processo interpretativo (Schwandt, 2000).
A filosofia hermenêutica (Gadamer) concebe a compreensão interpretativa de uma maneira muito diferente. Em primeiro lugar, concebe a compreensão não como um procedimento, mas como a própria condição do ser humano. A compreensão não é “uma atividade isolada dos seres humanos, mas a estrutura básica de nossa experiência vital. Sempre tomamos algo como algo. Esta é a forma primordial em que se nos apresenta nossa orientação ao mundo, e não podemos reduzi-la a nada mais simples ou imediato” (Gadamer, 1970, p. 87).
Em segundo lugar, o preconceito não é concebido como um atributo do qual devemos nos livrar para alcançar uma compreensão clara, nem se assume que as tradições e os preconceitos que moldam nossas tentativas de compreensão possam ser controlados voluntariamente. A tradição não é algo externo, objetivo e passado, do qual possamos nos libertar e distanciar, mas uma força viva que surge em toda compreensão, condicionando nossas interpretações. A tentativa de escapar da tradição seria tão vã quanto tentar sair de nossa própria pele (Gallagher, 1992). Dado que não podemos escapar nem controlar essa tradição, só podemos examinar nossos preconceitos historicamente herdados e inconscientemente assumidos, e modificar aqueles que impedem nossas tentativas de compreender os outros e a nós mesmos. O fato de que pertencemos a uma tradição que, em certo sentido, nos governa, não implica que meramente repetimos os preconceitos da tradição.
Em terceiro lugar, apenas no encontro dialógico com aquilo que não compreendemos, e nos parece estranho, podemos testar nossos preconceitos. A compreensão é participativa, conversacional e dialógica, sempre envolve uma linguagem e uma dinâmica de perguntas e respostas. Grondin (1994) argumenta que Gadamer sustenta que a compreensão é linguística porque a linguagem incorpora o único meio para realizar nossas conversas: a dependência linguística se expressa em nossa busca pela linguagem para nos expressar. A compreensão ocorre no diálogo; o significado que se busca ao compreender um texto ou ação social é temporal e dinâmico, sempre surge na ocasião específica da compreensão.
Essas características da hermenêutica filosófica se opõem ao objetivismo semântico do interpretativismo, que assume que “a ação humana tem um significado que pode ser determinado pelo intérprete”. Na hermenêutica filosófica, o texto ou a ação humana não são um objeto externo, independente de suas interpretações, capaz de ser árbitro de sua correção. O significado não é descoberto, mas negociado no ato da interpretação. Nunca há uma interpretação finalmente correta, e nisso coincide com a postura do construtivismo, mas a hermenêutica filosófica concebe o significado não necessariamente como “construído”, mas como “negociado”.
Bernstein (1983, p. 139) descreve isso da seguinte maneira: “Sempre compreendemos e interpretamos à luz de nossos preconceitos, que mudam ao longo da história. Por isso, Gadamer nos diz que compreender é sempre compreender de outro modo. Mas isso não significa que nossas interpretações sejam arbitrárias e distorcidas. Devemos buscar uma compreensão correta do que os objetos de nossa interpretação nos dizem. Mas o que eles nos dizem será diferente à luz de nossos horizontes em mudança e das diferentes perguntas que aprendemos a fazer. Tal análise do caráter aberto e dinâmico de toda compreensão e interpretação só pode ser concebido como distorção se assumirmos que um texto possui um significado em si mesmo que pode ser isolado de nossos preconceitos”.
No ato de compreender, não há dois passos separados (adquirir a compreensão e aplicá-la); a compreensão é uma experiência prática no mundo e do mundo, que constitui o tipo de pessoas que somos no mundo. A compreensão é vivencial ou existencial. Gadamer aponta que a hermenêutica não pretende propor um método de compreensão, mas esclarecer as condições nas quais a compreensão ocorre.
* Tradução não-oficial, para fins didáticos, de um trecho de:
Primero, Gerardo. Crítica a la hermenéutica como marco teórico para las ciencias sociales. Scientia in verba Magazine, v. 2, p. 7–24, 2018.