Decisão do Caso Alyne Pimentel traduzida para o português

Henrique Napoleão Alves
47 min readSep 12, 2024

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Alyne Pimentel, falecida em 2002, vítima do Estado brasileiro

Um dos materiais que utilizarei na minha disciplina “Jurisprudência Internacional e o Direito Brasileiro”, no Mestrado em Direito da Universidade FUMEC, é a decisão do Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, também conhecido como “Comitê CEDAW”, no caso Alyne Pimentel.

O Comitê CEDAW (sigla em inglês para Committee on the Elimination of Discrimination against Women) tem a responsabilidade de garantir a aplicação da Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

Emitida em 2011, a decisão do Comitê CEDAW está em inglês. Promovi sua tradução para o português para facilitar a leitura e o estudo dos alunos. Decidi compartilhar a tradução aqui para que outras pessoas possam dela se beneficiar. Ressalva: tradução não-oficial e para fins didáticos. Agradeço a assistente Sarah Ebram Alvarenga pela colaboração nessa tradução.

Nações Unidas

CEDAW/C/49/D/17/2008

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher

Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher

Quadragésima nona sessão

11 à 29 de julho de 2011

Ditames

Comunicação No. 17/2008

Submetida por: Maria de Lourdes da Silva Pimentel, representada pelo Centro de Direitos Reprodutivos e pela Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos

Alegada vítima: Alyne da Silva Pimentel Teixeira (falecida)

Estado-parte: Brasil

Data da comunicação: 30 de novembro de 2007 (submissão inicial)

Em 25 de julho de 2011, o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher adotou o texto em anexo como o Ditame do Comitê, nos termos do artigo 7°, parágrafo 3°, do Protocolo Facultativo, em relação à Comunicação No. 17/2008.

Anexo
Ditame do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher nos termos do artigo 7°, parágrafo 3°, do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (quadragésima nona sessão)

Comunicação No. 17/2008*

Submetida por: Maria de Lourdes da Silva Pimentel, representada pelo Centro de Direitos Reprodutivos e pela Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos

Alegada vítima: Alyne da Silva Pimentel Teixeira (falecida)

Estado-parte: Brasil

Data da comunicação: 30 de novembro de 2007 (submissão inicial)

O Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, estabelecido nos termos do artigo 17 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,

Reunido em 25 de julho de 2011,

Adota o seguinte:

Ditame nos termos do artigo 7°, parágrafo 3°, do Protocolo Facultativo

1. A autora da comunicação, datada de 30 de novembro de 2007, é Maria de Lourdes da Silva Pimentel, mãe de Alyne da Silva Pimentel Teixeira (falecida), agindo em seu próprio nome e em nome da família da falecida. São representadas pelo Centro de Direitos Reprodutivos e pela Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos.[1] Alegam que Alyne da Silva Pimentel Teixeira é vítima de violação, por parte do Estado-parte, de seu direito à vida e à saúde, nos termos dos artigos 2 e 12 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. A Convenção e o Protocolo Facultativo entraram em vigor para o Estado-parte em 2 de março de 1984 e 28 de setembro de 2002, respectivamente.

Os fatos conforme apresentados pela autora

2.1 Alyne da Silva Pimentel Teixeira, cidadã brasileira negra, nasceu em 29 de setembro de 1974. Era casada e tinha uma filha, A.S.P., nascida em 2 de novembro de 1997.

2.2 Em 11 de novembro de 2002, a Sra. da Silva Pimentel Teixeira foi à Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória de Belford Roxo (o centro de saúde) sofrendo de náuseas intensas e dores abdominais. Ela estava no sexto mês de gravidez na ocasião. O médico obstetra-ginecologista de plantão prescreveu medicamentos antináuseas, vitamina B12 e um medicamento local para infecção vaginal, agendou exames de rotina de sangue e urina para 13 de novembro de 2002 como medida de precaução e mandou a Sra. da Silva Pimentel Teixeira para casa. Ela começou a tomar os medicamentos prescritos imediatamente.

2.3 Entre 11 e 13 de novembro de 2002, o estado da Sra. da Silva Pimentel Teixeira piorou consideravelmente, e em 13 de novembro de 2002 ela foi ao centro de saúde com a mãe para ver se o obstetra-ginecologista poderia vê-la antes dos exames de sangue e urina agendados. O obstetra-ginecologista a examinou e a internou às 8h25 no centro de saúde.

2.4 Outra médica examinou a Sra. da Silva Pimentel Teixeira na maternidade e não conseguiu detectar os batimentos cardíacos fetais. Às 11h, um ultrassom confirmou isso.

2.5 Os médicos do centro de saúde informaram à Sra. da Silva Pimentel Teixeira que ela precisava receber medicação para induzir o parto do feto natimorto e começaram a induzir o parto por volta das 14h. Às 19h55, a Sra. da Silva Pimentel Teixeira deu à luz o feto natimorto, de 27 semanas. Ela ficou desorientada imediatamente depois.

2.6 Em 14 de novembro de 2002, cerca de 14 horas após o parto, a Sra. da Silva Pimentel Teixeira foi submetida a uma curetagem para remover partes da placenta e da decídua, depois disso, seu estado continuou a piorar (hemorragia grave, vômito com sangue, pressão arterial baixa, desorientação prolongada e fraqueza física esmagadora, incapacidade de ingerir alimentos). Sua mãe e marido não visitaram o centro de saúde naquele dia porque confiaram nas garantias dadas por telefone de que a Sra. da Silva Pimentel Teixeira estava bem.

2.7 A autora afirma que, em 15 de novembro de 2002, a Sra. da Silva Pimentel Teixeira ficou mais desorientada, sua pressão arterial permaneceu baixa, ela continuou a vomitar, teve dificuldade para respirar e continuou com hemorragia. A equipe do centro de saúde realizou uma punção abdominal, mas não encontrou sangue. A Sra. da Silva Pimentel Teixeira recebeu oxigênio, Cimetidina, Manitol, Decadron e antibióticos. Os médicos explicaram à sua mãe que seus sintomas eram consistentes com os de uma mulher que nunca havia recebido cuidados pré-natais e que ela precisava de uma transfusão de sangue; Naquele momento, ela chamou o marido da Sra. da Silva Pimentel Teixeira, que então foi ao centro de saúde. Às 13h30, a equipe pediu à mãe da Sra. da Silva Pimentel Teixeira os registros médicos pré-natais porque não conseguiram localizar nenhum no centro de saúde.

2.8 Os médicos do centro de saúde contataram hospitais públicos e privados com instalações superiores para transferir a Sra. da Silva Pimentel Teixeira. Somente o Hospital Geral de Nova Iguaçu, municipal, tinha vaga disponível, mas se recusou a usar sua única ambulância para transportá-la naquela hora. Sua mãe e seu marido não conseguiram uma ambulância particular, e a Sra. da Silva Pimentel Teixeira esperou em estado crítico por oito horas, com sintomas clínicos manifestos de coma nas últimas duas horas, para ser transportada de ambulância para o hospital.

2.9 Quando a Sra. da Silva Pimentel Teixeira chegou ao hospital com dois médicos e seu marido, às 21h45 do dia 15 de novembro de 2002, ela estava hipotérmica, tinha sofrimento respiratório agudo e apresentava um quadro clínico compatível com coagulação intravascular disseminada. Sua pressão arterial caiu para zero, e ela teve que ser ressuscitada. O hospital a colocou em uma área improvisada no corredor da emergência porque não havia leitos disponíveis.

2.10 Os atendentes médicos não trouxeram seus registros médicos para o hospital. Em vez disso, eles forneceram ao médico responsável um breve relato oral de seus sintomas.

2.11 Em 16 de novembro de 2002, a mãe da Sra. da Silva Pimentel Teixeira a visitou. Ela estava pálida e tinha sangue na boca e nas roupas. A equipe do hospital mandou a mãe da Sra. da Silva Pimentel Teixeira ao centro de saúde para recuperar seus registros médicos. No centro, ela foi questionada sobre por que queria os registros e obrigada a esperar por eles.

2.12 A Sra. da Silva Pimentel Teixeira faleceu às 19h do dia 16 de novembro de 2002. Uma autópsia constatou que a causa oficial da morte foi hemorragia digestiva. Segundo os médicos, isso resultou do parto do feto natimorto.

2.13 Em 17 de novembro de 2002, a pedido do hospital, a mãe da Sra. da Silva Pimentel Teixeira voltou ao centro de saúde para retirar os documentos médicos de sua filha. Os médicos do centro de saúde disseram a ela que o feto estava morto no útero há vários dias e que isso havia causado a morte.

2.14 Em 11 de fevereiro de 2003, o marido da Sra. da Silva Pimentel Teixeira [2] entrou com uma ação contra o sistema de saúde por danos materiais e morais.

A denúncia

3.1 A autora argumenta que o artigo 2 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher exige ação imediata para combater a discriminação contra a mulher, conforme definido no artigo 1 da referida Convenção, quando o direito à vida de uma mulher é violado pela falta de garantia de sua segurança durante a gravidez e o parto.

3.2 A autora argumenta que o artigo 2 (c) da Convenção exige que os Estados- partes não apenas garantam na lei medidas para combater a discriminação, mas também garantam a implementação prática dessas medidas e a realização dos direitos sem demora. O Comitê estabeleceu que os Estados-partes devem garantir que a legislação, a ação executiva e as políticas cumpram a obrigação de respeitar, proteger e realizar o direito das mulheres aos cuidados de saúde e estabelecer um sistema que garanta uma ação judicial eficaz. O não cumprimento constituiria violação do artigo 12 da Convenção. Além disso, o Comitê observou que uma atenção especial deve ser dada às necessidades e direitos de saúde de mulheres pertencentes a grupos vulneráveis e desfavorecidos e que o dever de eliminar a discriminação no acesso aos cuidados de saúde inclui a responsabilidade de levar em consideração a maneira como os fatores sociais, que podem variar entre as mulheres, determinam seu estado de saúde.

3.3 A autora sustenta que as obrigações no campo da saúde nos termos dos artigos 2 e 12 da Convenção são obrigações de efeito imediato, porque os direitos à vida e à não discriminação são imediatamente exequíveis e as violações exigem ação governamental urgente. Referindo-se ao Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a autora argumenta que as obrigações de “assegurar” são de caráter mais imediato e não estão sujeitas à qualificação de realização progressiva, em contraste com as obrigações de “reconhecer”.

3.4 A autora afirma que o Brasil não garantiu o acesso a tratamento médico de qualidade durante o parto, violando assim seus deveres nos termos dos artigos 2 e 12 da Convenção.[3] Dado que a principal razão pela qual as mulheres grávidas morrem é por causa de atrasos evitáveis na obtenção de cuidados de emergência adequados durante uma gravidez complicada — como foi o caso da Sra. da Silva Pimentel Teixeira — assistência qualificada na gravidez, incluindo assistência que atenda emergências obstétricas, é um fator vital na prevenção da morte materna.

3.5 Embora a Sra. da Silva Pimentel Teixeira tenha sido atendida por um ginecologista-obstetra e, portanto, nominalmente tivesse acesso a um profissional de saúde qualificado, a má qualidade do atendimento que recebeu foi um fator crítico em sua morte. Um profissional de saúde competente teria sido alertado para o fato de que as náuseas intensas e dores abdominais das quais a Sra. da Silva Pimentel Teixeira se queixou durante seu sexto mês de gravidez eram um sinal de um problema potencialmente sério e teria solicitado o tratamento adequado. Se os exames de sangue e urina tivessem sido realizados no mesmo dia, teria sido descoberto que o feto havia morrido e que o parto deveria ser induzido imediatamente. Isso teria impedido que o estado da Sra. da Silva Pimentel Teixeira se deteriorasse.

3.6 A autora alega que a Sra. da Silva Pimentel Teixeira deveria ter sido operada imediatamente após a indução do parto para a remoção da decídua e da placenta, que não haviam sido totalmente expelidas durante o processo de parto como normalmente ocorre, e que podem ter causado sua hemorragia e complicações e, por fim, sua morte. Afirmam que ela também deveria ter sido transferida para um estabelecimento mais bem equipado para a cirurgia, visto que a cirurgia ocorreu em resposta a uma situação anormal. Em vez disso, a Sra. da Silva Pimentel Teixeira foi operada na manhã seguinte ao parto e a cirurgia foi realizada no centro de saúde. As tentativas de transferi-la para um hospital supostamente não começaram até um dia inteiro depois que a Sra. da Silva Pimentel Teixeira começou a ter hemorragia grave. A transferência, que teria levado mais de oito horas, foi ineficaz para ajudá-la a obter atendimento qualificado porque ela foi deixada em grande parte sem acompanhamento em uma área improvisada no corredor do hospital por 21 horas até morrer. A incapacidade de fazer um encaminhamento oportuno e eficaz foi outro exemplo do atendimento incompetente que a Sra. da Silva Pimentel Teixeira recebeu.

3.7 A autora sustenta que a falta de acesso a atendimento médico de qualidade durante o parto é emblemática de problemas sistêmicos na forma como os recursos humanos são gerenciados no sistema de saúde brasileiro de forma mais geral. A prestação de cuidados qualificados durante a gravidez depende fundamentalmente de um sistema de saúde em funcionamento,[4] e isso requer um número adequado de atendentes qualificados alocados onde são necessários; escalas salariais satisfatórias e oportunidades de progressão na carreira; mecanismos de supervisão de apoio; mecanismos de funcionamento para melhoria da qualidade; e um sistema de transporte e encaminhamento em funcionamento para garantir o acesso oportuno a cuidados de alto nível, especialmente em uma emergência. Estudos de agências das Nações Unidas revelam que o sistema nacional de saúde brasileiro tem fraquezas consideráveis em cada uma dessas áreas. Problemas relacionados à baixa qualificação dos funcionários, um excesso de funcionários mal qualificados e a escassez de funcionários bem qualificados seriam maiores no nível municipal, como por exemplo em centros de saúde como a Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória de Belford Roxo, do que no nível estadual ou federal.

3.8 A autora sustenta que o Brasil não garantiu o acesso oportuno à assistência obstétrica de emergência, em violação aos artigos 2 e 12 da Convenção. Pelo menos três indicadores relacionados à acessibilidade e à qualidade da assistência obstétrica de emergência são particularmente relevantes, dadas as falhas específicas neste caso e as falhas mais sistêmicas do Estado-parte em eliminar as mortes maternas evitáveis. Os indicadores aos quais a autora se refere estão incluídos nas diretrizes para monitoramento da disponibilidade e uso de serviços obstétricos (outubro de 1997) do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a saber:

(a) Distribuição geográfica equitativa de serviços de assistência obstétrica de emergência (quatro serviços básicos de assistência obstétrica de emergência e um serviço abrangente de assistência obstétrica de emergência para cada 500.000 pessoas na população);

(b) Necessidade de assistência obstétrica de emergência atendida (no mínimo, a maioria das mulheres que precisam de assistência obstétrica de emergência devem estar recebendo serviços);

(c) A proporção de mulheres com complicações obstétricas que são admitidas em um serviço com serviços de assistência obstétrica de emergência e morrem não deve ser superior a 1 por cento.

A autora argumenta que um resultado negativo em qualquer uma das três categorias sugere que um Estado não está cumprindo sua obrigação de fornecer assistência à maternidade.

3.9 A autora afirma que os fatos do presente caso e dados de estudos sobre mortalidade materna no Brasil demonstram o não cumprimento da obrigação de prestar assistência à maternidade. As evidências mostram que os serviços de assistência obstétrica de emergência estão distribuídos de forma desigual geograficamente (indicador 1), que as mulheres têm níveis inaceitavelmente altos de necessidades não atendidas (indicador 2) e que as mortes obstétricas em serviços ocorrem em taxas inaceitavelmente altas (indicador 3), demonstrando assim a falha do Estado-parte em garantir a acessibilidade e a qualidade da assistência obstétrica de emergência, conforme suas obrigações com o direito à saúde nos termos do artigo 12 da Convenção.

3.10 Devido em parte à distribuição desigual de serviços de saúde de alto nível, a Sra. da Silva Pimentel Teixeira enfrentou sérios desafios para obter acesso a um hospital durante um período em que precisava de atendimento de emergência imediato: o único hospital que a aceitaria ficava em um município vizinho, a cerca de duas horas de distância. Considerando que o hospital disponível mais próximo exigia um tempo de viagem igual ao tempo médio de vida de uma mulher em sua condição, ela não tinha acesso razoável aos serviços de emergência necessários. Desigualdades semelhantes existem na distribuição de serviços de saúde entre os estados.

3.11 A autora afirma que, no presente caso, a ausência ou falha de um sistema de referência entre o centro de saúde e serviços de nível superior e a falta de coordenação entre o atendimento pré-natal e o parto atrasaram criticamente o acesso da vítima aos serviços e podem ter lhe custado a vida. Apenas um hospital entre os contatados tinha vaga disponível. Não havia como transportar a Sra. da Silva Pimentel Teixeira para aquele hospital porque ele não queria usar sua única ambulância. O centro de saúde não dispunha de transporte próprio e sua mãe não conseguiu encontrar uma ambulância particular. Não havia leitos disponíveis no hospital e os médicos do centro de saúde não enviaram seus prontuários médicos para o hospital.

3.12 Diante da própria experiência da Sra. da Silva Pimentel Teixeira e dos inúmeros estudos sobre mortalidade materna no Brasil que apontam a má qualidade da assistência à saúde no tratamento de emergências obstétricas como um dos principais motivos da alta taxa de mortalidade materna no Brasil, e uma taxa de mortalidade em muitos serviços que pode ser considerada em níveis inaceitavelmente altos, a autora sustenta que a incompetência e negligência dos profissionais de saúde e a falta de acesso oportuno aos serviços foram fatores-chave em sua morte.

3.13 A autora sustenta que o Estado-parte violou os direitos da Sra. da Silva Pimentel Teixeira nos termos do artigo 2 © da Convenção ao não garantir a proteção efetiva dos direitos das mulheres. Fazem referência à jurisprudência do Comitê na comunicação 5/2005 (Şahide Goekce (falecida) v. Áustria) segundo a qual o Comitê sustentou que o estabelecimento por um Estado-parte de recursos legais e outros [para lidar com a violência doméstica] deve ser apoiado por atores estatais que aderem às obrigações de diligência devida do Estado-parte. A autora também se refere à ênfase dada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos às obrigações dos Estados de organizar suas estruturas governamentais para garantir que a violência e a discriminação contra a mulher sejam prevenidas, investigadas e punidas e, ainda, que as mulheres tenham acesso à reparação. Os fatos do caso demonstram que o Estado-parte claramente falhou em implementar um sistema que garanta ação judicial efetiva e proteção no contexto de violações de direitos reprodutivos. Sustentam que a falta de resposta por parte do sistema judiciário aponta claramente para a falha sistemática do Estado-parte em reconhecer a necessidade de adotar medidas de reparação que compensem e ofereçam restituição às mulheres que foram tratadas de forma discriminatória.

3.14 Quanto ao esgotamento dos recursos internos, a autora sustenta que o acesso à justiça é ilusório. O marido da falecida, em seu próprio nome e em nome de sua filha de 5 anos, entrou com uma ação civil por danos materiais e morais em 11 de fevereiro de 2003, três meses após sua morte, e solicitou tutela antecipada duas vezes.[5] A primeira solicitação da família da falecida, feita em 11 de fevereiro de 2003, foi ignorada. O juiz também negou o segundo pedido, protocolado em 16 de setembro de 2003. No entanto, mais de quatro anos e meio depois, houve atividade judicial insignificante no processo civil e é provável que leve vários anos para que os tribunais cheguem a uma decisão. Especificamente, não houve audiência até o momento e o Tribunal demorou três anos e 10 meses para nomear um perito médico, embora as regras do tribunal exijam que isso seja feito dentro de 10 dias.

3.15 A falta de uma resposta significativa e oportuna do Judiciário teve um efeito devastador para a família, especialmente para a filha da falecida, que foi abandonada pelo pai e agora vive em condições precárias (falta de acesso a serviços psicológicos, parcos meios para necessidades básicas como alimentação, vestuário, etc.) com sua avó materna. A demora extraordinária em proferir decisão sobre os pedidos de tutela antecipada e a inércia na ação civil colocaram em risco os direitos da filha da vítima e representaram risco de dano irreparável.

3.16 A autora também alega que as decisões anteriores do Comitê apoiam a aplicabilidade da exceção à regra do esgotamento dos recursos internos. Afirmam que a conclusão do Comitê em relação à duração do processo judicial no caso A.T. v. Hungria (Comunicação 2/2003) — ou seja, que os casos de violência doméstica não gozam de prioridade nos processos judiciais — é análoga à situação no Brasil, onde os processos que envolvem violência contra a mulher e saúde da mulher, especialmente a saúde de mulheres de grupos vulneráveis, incluindo mulheres de baixa renda e mulheres negras, não têm prioridade no sistema judiciário.

3.17 A autora sustenta que a ação civil não pode ser considerada meio eficaz de obtenção de reparação pela violação de direitos humanos denunciada na comunicação e que minou a finalidade do recurso, cujo objetivo é atender e reparar de forma prática e imediata as necessidades da família. A demora equivale a uma negação de justiça.

3.18 A autora sustenta que o assunto não foi e não está sendo examinado em nenhum outro procedimento de investigação ou solução internacional.

Observações do Estado-parte sobre a admissibilidade e o mérito

4.1 Em sua única manifestação, de 13 de agosto de 2008, o Estado-parte indica que considera que as seguintes questões estão relacionadas ao presente caso: (a) a eliminação da discriminação contra as mulheres no acesso aos serviços de saúde, principalmente os relacionados à gravidez e ao parto; (b) a adoção legal de políticas públicas e outras medidas concretas que garantam a prestação de serviços de saúde reprodutiva; © a responsabilidade primordial do Estado pelos cuidados de saúde da mulher; e (d) a exigência de que os serviços de saúde disponíveis garantam o consentimento informado total, respeitem a dignidade de todos e garantam a confidencialidade, e que os profissionais de saúde estejam atentos às demandas específicas das mulheres. O Estado-parte explica que o direito à saúde nos artigos 6 e 196 da Constituição Federal Brasileira estabelece o direito subjetivo dos indivíduos, segundo o qual o Estado-parte tem obrigações positivas e negativas. Explica que o serviço público de saúde, por meio de políticas públicas de saúde, é o aparelho estatal responsável por tal direito e detalha o papel proativo e defensivo do Estado na área da saúde. Observa ainda que o conceito de direito à saúde inclui diversos elementos, na medida em que saúde é definida como o bem-estar social, psíquico e físico total, do qual o direito à saúde representa apenas um aspecto. Destaca também a diferença entre o direito à saúde e o direito à assistência à saúde, sendo que este último se restringe aos atos médicos praticados para detectar e tratar doenças e se relaciona com o direito à saúde no que diz respeito à capacidade de curar doenças ou prolongar a expectativa de vida. O direito à saúde ou à assistência à saúde exige, por definição, a organização e o funcionamento de serviços de assistência.

4.2 O Estado-parte passa então a examinar o direito à saúde no contexto da sua Constituição Federal e as competências correspondentes das respetivas esferas políticas e do setor privado. O artigo 196 da Constituição Federal define a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. A execução das ações e serviços de saúde é feita pelo próprio Governo ou por terceiros, sendo que o Governo detém a competência exclusiva para a sua regulamentação, fiscalização e controle. O Estado implementa essas ações e serviços por meio de uma rede regionalizada e hierarquizada composta pelo Sistema Único de Saúde (SUS). As ações e serviços de saúde, portanto, incluem a assistência à saúde ou os cuidados de saúde, bem como uma série de outras funções, como a vigilância sanitária, que, em conjunto, compõem o direito à saúde.

4.3 A Constituição Federal determina que o setor privado só pode prestar assistência à saúde. Não está autorizado a executar as ações de saúde previstas no artigo 200 da Constituição,[6] que nada têm a ver com a assistência à saúde. As instituições privadas podem participar do sistema de saúde de acordo com suas diretrizes por meio de contrato administrativo ou convênio. No que diz respeito à distribuição de responsabilidades entre as esferas políticas, o inciso VII do artigo 30 da Constituição determina que compete aos Municípios prestar serviços de saúde à população, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado.

4.4 A divisão de responsabilidades, conforme delineada na Constituição, indica que os deveres correspondentes ao direito à saúde, em sua mais ampla dimensão positiva, incluindo a assistência à saúde e outras ações e serviços de saúde, são da competência exclusiva do Estado, assim como a sua regulamentação, fiscalização e controle. O setor privado está autorizado a prestar assistência à saúde, que engloba serviços médicos e farmacêuticos, enquanto os municípios detêm a competência exclusiva sobre os serviços de saúde destinados à população em geral. O âmbito de atuação do Estado, portanto, é muito mais amplo do que o previsto para o setor privado. As políticas de saúde, ou seja, são domínio exclusivo das esferas políticas, assim como as ações voltadas à fiscalização dos serviços de assistência à saúde prestados pelo setor privado.

4.5 O Estado-parte explica ainda seu dever de regulamentar, fiscalizar e controlar as ações e serviços de saúde. O Ministério da Saúde estabelece o Sistema Nacional de Auditoria e coordena a avaliação técnica e financeira do sistema de saúde em todo o território nacional com a cooperação técnica dos estados, municípios e Distrito Federal. O Sistema Nacional de Auditoria realiza avaliação técnica e científica, auditorias contábil, financeira e patrimonial do sistema de saúde por meio de um processo descentralizado. A descentralização é assegurada por meio de órgãos estaduais e municipais e unidades do Ministério da Saúde em cada estado brasileiro e no Distrito Federal.

4.6 As instituições privadas só podem legalmente ser incorporadas ao sistema de saúde caso a disponibilidade do serviço seja insuficiente para garantir a cobertura à população de determinada área geográfica. O papel das instituições privadas dentro do sistema de saúde, portanto, é o de prestar assistência à saúde, não o de realizar ações de fiscalização, controle ou regulamentação ou de implementar políticas públicas no âmbito do sistema. Essas instituições estão sujeitas aos princípios do sistema de saúde e do Sistema Nacional de Auditoria no que diz respeito à avaliação da qualidade dos serviços.

4.7 No que diz respeito às alegações de que o Estado-parte violou os artigos 2 e 12 por não ter adotado medidas destinadas a eliminar a discriminação contra a mulher no campo da saúde, pela condução direta ao atendimento médico abaixo do padrão prestado à Sra. da Silva Pimentel Teixeira, o Estado-parte observa que uma série de políticas públicas estão em desenvolvimento para atender às necessidades específicas das mulheres, particularmente aquelas em situações de vulnerabilidade, que afetam a igualdade entre homens e mulheres. Trata-se, na verdade, de uma denúncia de falta de acesso à assistência médica, na medida em que a comunicação não oferece nenhuma ligação entre o gênero da Sra. da Silva Pimentel Teixeira e os possíveis erros médicos cometidos. O Estado- parte refere-se à conclusão do relatório de visita técnica da Secretaria de Auditoria do Rio de Janeiro que concluiu que as falhas na assistência médica prestada à Sra. da Silva Pimentel Teixeira não se enquadraram na discriminação contra a mulher, mas sim na prestação de serviços deficientes e de baixa qualidade à população, resultando nos fatos narrados. O Estado-parte admite que a condição de vulnerabilidade da Sra. da Silva Pimentel Teixeira exigia tratamento médico individualizado, o que não ocorreu, mas alega que a alegada falta de atendimento médico específico não foi negada por falta de políticas públicas e medidas abrangidas pela obrigação do Estado-parte de combater a discriminação contra as mulheres em todos os campos. O caso descreve uma possível falha na assistência médica prestada por uma instituição privada de saúde, indicando erros nos mecanismos utilizados na contratação de serviços privados de saúde e, por extensão, na sua fiscalização e controle, e não falta de empenho do Estado no combate à discriminação contra a mulher.

4.8 O Estado-parte argumenta que essa linha de raciocínio foi confirmada pelo Comitê Estadual de Mortalidade Materna, que concluiu no inquérito sobre morte materna emitido pela Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro que a morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira não foi materna e que a causa provável da morte foi hemorragia digestiva. Além disso, o relatório contém um resumo das informações sobre sua morte, incluindo o atendimento médico inicial prestado, sua internação hospitalar e sua morte final, com referência, ainda, à causa da morte e aos momentos críticos de seu tratamento, bem como comentários e recomendações. O relatório resumido do inquérito é o documento que o Comitê Estadual de Mortalidade Materna analisa e utiliza, em conjunto com outros relatórios, para a elaboração de um relatório anual com a descrição de estudos de caso e as medidas de prevenção implementadas para reduzir a mortalidade materna.

4.9 O Estado-parte afirma ainda que o presente caso revela possíveis falhas na assistência à saúde prestada pela Casa de Saúde e Maternidade Nossa Senhora da Glória, que, segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), é um hospital privado com fins lucrativos, autorizado a realizar procedimentos de média e alta complexidade. A Casa de Saúde funciona por meio de convênio entre o SUS e a administração municipal. Em resposta às alegações da autora de que a instituição privada violou o direito à saúde da Sra. da Silva Pimentel Teixeira e que o município de Belford Roxo teria falhado no cumprimento do seu dever de fiscalizar e controlar os serviços de saúde prestados, o Ministério da Saúde solicitou ao Departamento Nacional de Auditoria do SUS que realizasse visitas técnicas aos municípios de Belford Roxo e Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, para apurar os fatos do caso e apurar uma eventual negligência ou erro médico no atendimento prestado à gestante. O relatório da visita técnica recomendou o encaminhamento da matéria aos Conselhos de Classe para apuração dos fatos relativos aos profissionais de saúde (médicos e enfermeiros) que atenderam a Sra. da Silva Pimentel Teixeira e ao Comitê Nacional de Prevenção da Mortalidade Materna e Neonatal, vinculado ao Ministério da Saúde.

4.10 Quanto à ação judicial movida em 11 de fevereiro de 2003 pela família da Sra. da Silva Pimentel Teixeira e outros, pedindo indenização, o Estado-parte informa que o processo passou à fase de julgamento após alegações finais de ambas as partes sobre o laudo pericial e, não havendo previsão de atrasos injustificados, a sentença de mérito era esperada para julho de 2008. Dada a complexidade da ação civil, que envolve mais de um réu e exige prova pericial, o processo não se estendeu além do prazo normal para ações judiciais dessa natureza.

4.11 O Estado-parte rejeita a alegação da autora de que o ocorrido com a Sra. da Silva Pimentel Teixeira reflete a falta de compromisso do Estado-parte com a redução da mortalidade materna e que o Estado-parte sofre de uma falha sistêmica na proteção dos direitos básicos das mulheres. Apresenta um panorama detalhado das diversas medidas implementadas no país até o momento, bem como da estrutura nacional existente e dos planos nacionais para a efetivação dos direitos da mulher, em especial à saúde da mulher, direitos sexuais e direitos reprodutivos, que atestam a política concertada do Estado-parte para eliminar a discriminação contra as mulheres. O Estado-parte reconhece as mortes evitáveis de mulheres em idade fértil como violações dos direitos humanos e, por isso, o Governo Federal, principalmente na atual gestão, tem como prioridade a saúde da mulher. Apresenta ainda dados que demonstram a redução da mortalidade materna, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, e argumenta que o presente caso representa uma exceção causada por negligência profissional, excesso de trabalho, infraestrutura inadequada e falta de preparo profissional. Quanto à existência de discriminação, na medida em que o caso envolve uma mulher afro-brasileira da periferia urbana, o Estado-parte destaca que o relatório da visita técnica elaborado pela Secretaria de Auditoria do SUS não constatou indícios de discriminação. No entanto, o Estado-parte não descarta a possibilidade de que a discriminação possa ter contribuído, em alguma medida, mas não de forma decisiva, para o evento. Ou seja, a convergência ou associação do conjunto de elementos descritos pode ter contribuído para a não prestação da assistência necessária e emergencial à Sra. da Silva Pimentel Teixeira, resultando em seu óbito.

4.12 O Estado-parte explica que uma das prioridades estabelecidas no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres é a promoção da assistência obstétrica qualificada e humanizada, em especial para as mulheres negras e indígenas, incluindo a atenção ao aborto inseguro, de forma a reduzir a mortalidade materna. Para tanto, são previstas 18 ações até 2011, sendo o Ministério da Saúde o responsável pela sua implementação. Em 2004, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: Princípios e Diretrizes, que reflete o compromisso de implementar ações de saúde que contribuam para a garantia dos direitos humanos das mulheres e a redução da mortalidade por causas evitáveis. Quanto à formulação da política, o Estado-parte destaca a participação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), do movimento de mulheres, do movimento de mulheres negras e trabalhadoras rurais, de associações científicas, conselhos profissionais, pesquisadores e acadêmicos da área, gestores do SUS e organismos de cooperação internacional.

4.13 Por fim, o Estado-parte explica detalhadamente sua ênfase no ciclo reprodutivo e as ações desenvolvidas com o objetivo de garantir atenção integral e de qualidade à saúde da mulher grávida, por meio de assistência pré-natal adequada, atendimento especializado à gestante de risco, assistência ao parto e puerpério em unidades de saúde, atendimento obstétrico em situações de urgência/emergência e ações de planejamento familiar.

4.14 O Estado-parte conclui que não tem sido, evidentemente, omisso ou insensível à sua obrigação de implementar políticas de saúde que atendam especificamente as mulheres. Esse esforço não se restringe aos direitos sexuais e reprodutivos, mas abrange uma atenção mais ampla à saúde da mulher, que envolve o oferecimento de cuidados para seu bem-estar físico e mental geral.

Comentários da autora sobre as observações do Estado-parte sobre a admissibilidade e o mérito

5.1 Na petição de 19 de janeiro de 2009, a autora relembra que a obrigação de reduzir a mortalidade materna é uma das principais obrigações que o direito à saúde acarreta. A autora destaca que o Estado-parte reconheceu que as mortes evitáveis são um problema grave no Brasil e que a não tomada de providências para enfrentá-las constitui uma grave violação de direitos humanos. No entanto, apesar do reconhecimento retórico do problema da mortalidade materna, o Estado-parte não cumpriu sua obrigação de garantir o direito à vida e à saúde das mulheres. A autora cita estatísticas, incluindo estatísticas da OMS, segundo as quais mais de 4.000 mortes maternas ocorrem a cada ano no Brasil, representando um terço de todas as mortes maternas na América Latina. A petição também se refere a uma avaliação das Nações Unidas, segundo a qual as taxas de mortalidade materna são “consideravelmente mais altas do que as de países com menores níveis de desenvolvimento econômico, e são geralmente consideradas inaceitáveis”.[7] As altas taxas persistentes de mortalidade materna no Estado-parte constituem uma falha sistêmica em priorizar e proteger os direitos humanos básicos das mulheres. A morte materna evitável da Sra. da Silva Pimentel Teixeira exemplifica claramente essa falha.

5.2 A autora reitera que a morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira constitui uma violação ao direito à vida consagrado no artigo 6° do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ao direito à efetiva proteção dos direitos da mulher e ao direito à saúde, nos termos dos artigos 2° (c) e 12 da Convenção. Mais especificamente, o Estado-parte não garantiu o acesso a tratamento médico de qualidade durante o parto e a assistência obstétrica de emergência em tempo hábil, implicando o direito à não discriminação em razão de gênero e raça. A incapacidade de sua família em obter reparação do Estado-parte viola o direito à proteção efetiva.

5.3 A autora contesta a alegação do Estado-parte de que o processo não se estendeu além do prazo normal para ações judiciais dessa natureza, argumentando implicitamente que, portanto, o caso não se enquadra na exceção “prolongado de forma irrazoável” à exigência de esgotamento dos recursos internos. Esse argumento ignora os atrasos significativos impostos pelo Estado-parte que efetivamente impediram a peticionária de resolver seu caso em um tribunal doméstico. A família inicialmente entrou com um pedido de danos materiais e morais em 11 de fevereiro de 2003, apenas três meses após o óbito. Quase oito anos se passaram desde que essa petição foi protocolada, mas a atividade judicial no caso tem sido mínima e não está claro quando o tribunal chegará a uma decisão. O Estado-parte não aborda adequadamente o atraso excessivamente prolongado em seus comentários, afirmando apenas que o caso está atualmente na fase de julgamento após alegações finais de ambas as partes e que “atrasos injustificados na conclusão do caso” são improváveis. No entanto, é incontroverso que a ação judicial foi ajuizada em 11 de fevereiro de 2003 e que os trabalhos periciais somente foram concluídos em agosto de 2007, mais de quatro anos depois. Além disso, ao contrário da afirmação do Estado-parte de que uma sentença de mérito seria proferida em julho de 2008, tal sentença ainda não ocorreu. A autora argumenta, portanto, que a não conclusão do mérito do caso doméstico não pode mais ser considerada razoável e remete, entre outros, ao caso A.T. v. Hungria, em que o Comitê considerou que uma demora de três anos em um caso de violência doméstica constituía uma demora excessivamente prolongada na acepção do artigo 4°, parágrafo 1°, do Protocolo Facultativo.[8] A autora ainda se reporta à afirmação do Comitê no mesmo caso de que os casos de violência doméstica no Estado em questão não gozavam de prioridade nos processos judiciais e argumenta que tal constatação é análoga à situação no Estado-parte, onde os processos que envolvem violência contra a mulher e saúde da mulher, principalmente no que diz respeito às mulheres de grupos vulneráveis, incluindo mulheres de baixa renda e negras, não são priorizados no sistema judiciário.[9] Além disso, o Estado-parte não esclareceu porque a nomeação de um perito médico tornaria o caso excessivamente complexo. A família não agiu para protelar o demorado processo judicial e a conduta das autoridades estaduais e judiciais tem sido o principal motivo para o prolongamento irrazoável do processo. Primeiro, o tribunal doméstico levou quase quatro anos para nomear um perito médico final, embora as regras do tribunal exijam tal nomeação no prazo de 10 dias. Em segundo lugar, mesmo após a eventual conclusão dos trabalhos periciais e das alegações de ambas as partes, já se passou mais de um ano e o Brasil não cumpriu seu próprio prazo para proferir sentença de mérito. Em terceiro lugar, o Brasil não aborda os significativos atrasos judiciais no uso, pela família, da medida cautelar de tutela antecipada.

5.4 A autora afirma que a demora irrazoável agravou os efeitos já devastadores do óbito para a família. Desde o protocolo da Comunicação junto ao Comitê, em 2007, a já precária situação econômica da família se agravou. A autora, que era a cuidadora da família e única fonte de renda, foi obrigada a parar de trabalhar como empregada doméstica por motivo de saúde. Ela não recebe seguro-desemprego. A família de cinco pessoas é obrigada a sobreviver com o pouco dinheiro que o bisavô de A.S.P. lhes dá. Apesar do trauma psicológico de perder a mãe aos 5 anos de idade, A.S.P. não recebeu o tratamento médico e psicológico necessário por motivos financeiros. Ela também desenvolveu uma deficiência na fala e está com dificuldades na escola. A autora sustenta que a trágica situação de vida atual de A.S.P. configura uma violação contínua das obrigações do Brasil decorrentes da Convenção, bem como do seu próprio ordenamento jurídico interno e da Convenção sobre os Direitos da Criança.

5.5 Além do âmbito da admissibilidade, a autora argumenta que o Estado-parte não enfrenta o problema das demoras sistêmicas em seu sistema judicial que violam o direito à proteção efetiva previsto no artigo 2°, alínea (c), da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. O Estado-parte tem falhado rotineiramente em fornecer recursos judiciais adequados para mulheres de grupos vulneráveis,[10] como a Sra. da Silva Pimentel Teixeira e sua família. Os atrasos judiciais são agravados para alguns dos segmentos mais vulneráveis da sociedade; mulheres de baixa renda e mulheres negras enfrentam dificuldades generalizadas “para fazer valer os recursos judiciais para reparar atos de violência e discriminação cometidos contra elas”.[11] Para a filha da vítima, esses atrasos significam que seu dia a dia se tornou ainda mais precário. Crianças que perderam suas mães correm maior risco de morrer, têm menor probabilidade de frequentar a escola e podem receber menos cuidados de saúde ao longo da vida. Por isso, crianças como A.S.P. têm direito a medidas especiais de proteção previstas na legislação interna brasileira.[12] Em vez disso, a inação continuada dos tribunais nacionais significa que os direitos de A.S.P. estão sendo colocados em risco, arriscando danos irreparáveis.

5.6 No que diz respeito às obrigações do Estado-parte decorrentes da Convenção, a autora argumenta que a implementação do direito à saúde implica certas obrigações de efeito imediato, incluindo a eliminação da discriminação e a tomada de medidas para a plena realização do direito. A exigência de que os serviços de saúde estejam disponíveis em bases não discriminatórias é, portanto, uma obrigação de efeito imediato. O direito à saúde implica obrigações legais específicas para os Estados-partes, que devem respeitar, proteger e realizar o direito. A simples adoção de uma estratégia nacional de saúde não é suficiente para cumprir as obrigações do Estado-parte. Essa estratégia também deve ser implementada e revisada periodicamente, com base em um processo participativo e transparente.[13] A autora se refere às observações finais do Comitê, nas quais deixou claro que a implementação pelo Brasil de suas políticas nacionais de saúde continua insuficiente para o pleno cumprimento da Convenção no campo da saúde materna. O Comitê observou, em particular, que o Brasil estava enfrentando problemas para implementar as disposições da Convenção em todos os níveis da República Federativa de forma consistente, o que estava ligado ao diferente grau de vontade política e compromisso das autoridades estaduais e municipais. A necessidade de avaliações de impacto das políticas por meio de indicadores e benchmarks havia sido discutida pelo Comitê em relação ao Brasil, mas o Brasil não havia se comprometido com nenhum esforço para tal monitoramento baseado em resultados.[14]

5.7 A distinção entre obrigações de conduta e obrigações de resultado é fundamental para a compreensão do direito à saúde. Quando os Estados atuam para implementar esse direito, eles não apenas precisam criar políticas voltadas à realização do direito (uma obrigação de conduta), mas também devem garantir que essas políticas realmente alcancem os resultados desejados (uma obrigação de resultado).

5.8 A autora argumenta que os programas do Estado-parte não demonstraram as medidas concretas e os resultados exigidos pela Convenção. Embora o Pacto Nacional para a Redução da Mortalidade Materna e Neonatal estabeleça metas louváveis para a redução da mortalidade materna, os altos níveis de mortalidade materna não mudaram significativamente. Isso se deve a pelo menos três fatores. Primeiro, há uma série de problemas de coordenação. Em segundo lugar, as políticas de saúde do Brasil precisam ser respaldadas por financiamento adequado e alocado de forma equitativa: embora 10% dos gastos do Governo sejam dedicados à saúde, os gastos com saúde materna são mínimos em comparação com outros programas. O Brasil gastou apenas US$ 96 per capita em saúde em 2003, um valor assustadoramente baixo. Em terceiro lugar, as políticas não estão vinculadas à obtenção de resultados por meio de indicadores e benchmarks de saúde. Por exemplo, o financiamento do sistema de saúde não está atrelado aos resultados, que por sua vez não são suficientemente avaliados.

5.9 A autora contesta o raciocínio do Estado-parte, segundo o qual a comunicação não oferece nenhuma ligação entre o gênero da Sra. da Silva Pimentel Teixeira e os possíveis erros médicos cometidos e, portanto, eles não se enquadram na definição de discriminação estabelecida na Convenção. A autora argumenta que esse raciocínio ignora a definição de discriminação descrita na Convenção e em outros tratados internacionais de direitos humanos. Discriminação inclui ações do Estado que têm o efeito de criar uma barreira ao gozo dos direitos humanos, incluindo o direito ao mais alto padrão atingível de saúde. Segundo o artigo 1° da Convenção, a discriminação contra a mulher é definida como “toda a distinção, exclusão ou restrição feita em função do sexo, que tenha por objeto ou efeito prejudicar ou anular o reconhecimento, o gozo ou o exercício, pelas mulheres, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social, cultural, civil ou outro”. O artigo 2°, parágrafo (d), da Convenção exige que os Estados-partes “se abstenham de praticar qualquer ato ou política de discriminação contra a mulher e garantam que as autoridades públicas e as instituições ajam em conformidade com esta obrigação”. Para garantir a realização do direito à saúde, os Estados devem fornecer acesso aos serviços de saúde materna de forma não discriminatória. Este requisito não é formalista, mas exige que os Estados abordem as “características e fatores distintivos que diferem para as mulheres em comparação com os homens”, incluindo os fatores biológicos associados à saúde reprodutiva.[15] A negação ou negligência de intervenções de saúde que apenas as mulheres precisam é uma forma de discriminação contra as mulheres.

5.10 A assistência à saúde grosseiramente negligente prestada à vítima constitui uma forma de discriminação de fato nos termos da Convenção. O Estado-parte reconheceu que a condição de gestante da Sra. da Silva Pimentel Teixeira deveria ter garantido a ela acesso acelerado e qualitativamente melhor ao tratamento médico, mas concluiu que os erros na assistência à saúde materna da Sra. da Silva Pimentel Teixeira eram quase totalmente alheios à discriminação. A falta de oferta de serviços adequados de saúde materna para a população feminina de Belford Roxo constitui violação ao direito à não discriminação. O fato de a população da cidade ser majoritariamente negra agrava ainda mais essa violação.

5.11 A definição de discriminação do Estado-parte é excessivamente restrita porque não reconhece a distinção entre discriminação de jure e de fato. O Comitê abordou esse problema em suas observações finais sobre o Brasil.

5.12 No que diz respeito à responsabilidade do Estado-parte no plano internacional, a autora remete ao artigo 2°, alínea (e), da Convenção, segundo o qual os Estados-partes devem “adotar todas as medidas adequadas, para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa”. Esta obrigação é explicada com mais detalhes na Recomendação Geral No. 24 (1999) do Comitê sobre o artigo 12° da Convenção (mulheres e saúde), que, no seu parágrafo 15, exige que os Estados-partes “tomem medidas para prevenir e impor sanções por violações de direitos por particulares e organizações”. O Estado-parte reconheceu que os Estados-partes não podem se eximir de responsabilidade nessas áreas delegando ou transferindo esses poderes a agências do setor privado. Jurisprudências do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e da Corte Interamericana de Direitos Humanos estabelecem a responsabilidade do Estado por negligência médica cometida em instituições privadas de saúde. Significativamente, no caso Ximenes Lopes vs. Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos observou que a peticionária havia recebido cuidados de saúde mental de uma “entidade privada licenciada pelo Sistema Único de Saúde do Governo Federal”, embora o Brasil não tenha contestado a responsabilidade por esses motivos.[16] Na decisão final da Corte Interamericana, essa distinção público/privado não era mais uma questão central; a responsabilidade do Estado brasileiro por violações de direitos humanos no serviço privado de saúde licenciado publicamente foi presumida.[17] Adicionalmente, em A.S. v. Hungria, o Comitê afirmou que a Hungria era obrigada a monitorar instituições públicas e privadas quanto a violações de direitos humanos nos termos da Convenção.[18]

5.13 A autora contesta a avaliação do Estado-parte, segundo a qual a morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira não foi de natureza materna, tendo sido resultante de uma suposta “hemorragia digestiva”. A autora enfatiza que o Estado-parte se baseou em um relatório indisponível do Comitê Estadual de Mortalidade Materna para chegar a tal avaliação e que a classificação do óbito como não materno ignora claras evidências médicas em contrário. Evidências médicas demonstram que o óbito resultou de causas diretamente relacionadas à gravidez e era evitável.

5.14 A OMS define a morte materna como “a morte de uma mulher durante a gravidez ou dentro de 42 dias após o término da gravidez, independentemente da duração e localização da gravidez, de qualquer causa relacionada ou agravada pela gravidez ou seu manejo, mas não por causas acidentais ou incidentais”.[19] A autora observa que o Brasil afirma oficialmente usar essas classificações oficiais da OMS para morte materna,[20] mas que elas foram aplicadas incorretamente ao caso.

5.15 Quando a Sra. da Silva Pimentel Teixeira se apresentou inicialmente no centro de saúde em 11 de novembro de 2002, os profissionais médicos deveriam ter diagnosticado e tratado a morte fetal intrauterina, com base em seus sintomas urgentes. No entanto, a morte fetal intrauterina não foi diagnosticada até 13 de novembro de 2002, data em que o médico responsável deveria ter induzido o parto imediatamente. Após o parto do feto natimorto, muito mais tarde naquele dia, seus sintomas pioraram muito. Apesar do fato de que tais sintomas deveriam ter a levado a um tratamento imediato, ela só foi submetida à curetagem necessária para a remoção de restos placentários no dia seguinte. Apesar da óbvia necessidade de tratamento imediato e de sua condição continuamente piorando, ela só foi transferida para o hospital geral 49 horas após o parto. Seus registros médicos não foram transferidos com ela e a equipe do hospital geral não sabia que ela havia estado grávida recentemente. A não transferência de seus registros e a não informação à equipe médica de que ela estava grávida constitui negligência grave. Essa cadeia de eventos demonstra claramente que a morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira resultou de uma série de intervenções médicas negligentes após a morte fetal intrauterina. Seu óbito foi, portanto, causado por complicações obstétricas relacionadas à gravidez e deve ser classificado como morte obstétrica direta.

5.16 A autora argumenta que a classificação do óbito da Sra. da Silva Pimentel Teixeira como não materno exemplifica a subnotificação e classificação incorreta generalizadas das mortes maternas no Estado-parte. O Estado-parte enfrenta problemas recorrentes no que diz respeito às declarações de óbito destinadas a documentar as mortes maternas. As informações nas declarações de óbito tendem a ser de má qualidade ou simplesmente incorretas. Existem dois problemas específicos de informação relacionados às declarações de óbito, sendo que ambos são provavelmente fatores que levam à classificação incorreta, pelo Brasil, da morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira como não materna. Primeiro, os médicos geralmente não registram na declaração de óbito o fato de a paciente estar grávida ou ter dado à luz recentemente, levando à classificação incorreta de muitas mortes como não maternas. No caso da Sra. da Silva Pimentel Teixeira, não há menção à gravidez na declaração de óbito. Segundo os médicos no Brasil muitas vezes não relacionam a causa imediata ou final do óbito à gravidez da paciente, o que leva muitas mortes a serem classificadas como não maternas. O Ministério da Saúde reconheceu as dificuldades de monitorar a mortalidade materna quando os médicos não relacionam os óbitos à gravidez da paciente. Os médicos costumam declarar a causa da morte como uma “complicação terminal” ou usam outros termos médicos, como “hemorragia”, que não estão especificamente relacionados à gravidez. A gravidez da Sra. da Silva Pimentel Teixeira não é mencionada explicitamente em sua declaração de óbito, e a frase “hemorragia digestiva” não relaciona sua gravidez a sua morte. Na verdade, essa declaração de causa da morte está incompleta e insuficiente de acordo com os padrões médicos internacionais e brasileiros. O processo de autópsia não atendeu aos padrões médicos básicos em relação à sua exaustividade e determinação da causa da morte. Esta breve descrição da causa da morte é muito semelhante aos problemas comuns de subnotificação do Brasil, levantando preocupações sobre sua confiabilidade. Além disso, há poucas informações para revisão posterior nesses documentos oficiais que esclarecessem a natureza da morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira.

5.17 Por fim, a autora afirma que, embora a maioria dos estados do Brasil tenha comitês de mortalidade materna, que são projetados para investigar suspeitas de mortes maternas em nível estadual e local, não existe tal comitê na cidade de Belford Roxo, onde a Sra. da Silva Pimentel Teixeira morava. Sua morte foi investigada por uma comissão externa, o Comitê de Mortalidade do SUS apenas examinou seus registros médicos e não realizou nenhuma investigação adicional, embora tal investigação seja exigida pelo Ministério da Saúde. Além disso, a confiança do Estado-parte na decisão do Comitê de Mortalidade levanta preocupações porque o Estado se recusou a submeter essa decisão ao Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres.

Questões e procedimentos perante o Comitê

Consideração da admissibilidade

6.1 De acordo com a regra 64 do seu Regulamento, o Comitê decide se a comunicação é ou não admissível ao abrigo do Protocolo Facultativo da Convenção. Nos termos da regra 72.4 do seu Regulamento, o Comitê decide sobre a admissibilidade da comunicação antes de examinar o mérito da questão.

6.2 Embora tomando nota do argumento do Estado-parte de que a ação civil da família da falecida ainda estava pendente e que uma sentença era esperada para julho de 2008, o Comitê considera que o Estado não forneceu explicações adequadas e convincentes sobre algumas das questões levantadas pela autora, nomeadamente o atraso na nomeação do(s) perito(s) médico(s) e o atraso no julgamento e nas sentenças, que permanecem pendentes até o momento. O Comitê também observa a falta de uma explicação abrangente sobre o porquê de os dois pedidos de tutela antecipada apresentados em 11 de fevereiro de 2003 e 16 de setembro de 2003 terem sido rejeitados. O Comitê entende que os atrasos mencionados não podem ser imputados à complexidade do caso ou ao número de réus e conclui que o atraso de oito anos que decorreu desde a propositura da ação, não obstante a alegação do Estado-parte de que seria decidido em julho de 2008, constitui um atraso injustificadamente prolongado na acepção do artigo 4°, parágrafo 1°, do Protocolo Facultativo.

6.3 O Comitê considera que as alegações da autora relativas às violações dos artigos 2 e 12 da Convenção foram suficientemente fundamentadas para efeitos de admissibilidade. Tendo sido cumpridos todos os demais critérios de admissibilidade, o Comitê declara a comunicação admissível e passa ao seu exame quanto ao mérito.

Apreciação do mérito

7.1 O Comitê examinou a presente comunicação tendo em conta todas as informações disponibilizadas pela autora e pelo Estado-parte, conforme previsto no artigo 7°, parágrafo 1°, do Protocolo Facultativo.

7.2 A autora alega que a morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira constitui violação do seu direito à vida e à saúde, nos termos dos artigos 2 e 12, em conjunto com o artigo 1, da Convenção, na medida em que o Estado-parte não garantiu o tratamento médico adequado no que diz respeito à gravidez e não prestou assistência obstétrica de emergência em tempo oportuno, violando, portanto, o direito à não discriminação em razão de gênero, raça e origem socioeconômica. Para analisar essas alegações, o Comitê deve primeiro considerar se a morte foi “materna”. Em seguida, considerará se as obrigações decorrentes do artigo 12, parágrafo 2, da Convenção, segundo o qual os Estados-partes garantem às mulheres serviços apropriados em relação à gravidez, parto e pós-parto, foram cumpridas neste caso. Somente após essas considerações o Comitê analisará as demais violações alegadas da Convenção.

7.3 Embora o Estado-parte tenha argumentado que a morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira não foi materna e que a causa provável de seu óbito foi hemorragia digestiva, o Comitê observa que a sequência de eventos descrita pela autora e não contestada pelo Estado-parte, bem como a opinião de especialistas fornecida pela autora, indicam que sua morte foi de fato ligada a complicações obstétricas relacionadas à gravidez. Suas queixas de náuseas intensas e dores abdominais durante o sexto mês de gravidez foram ignoradas pelo centro de saúde, que não realizou um exame de sangue e urina urgente para verificar se o feto havia morrido. Os exames foram feitos dois dias depois, o que levou a uma deterioração do quadro da Sra. da Silva Pimentel Teixeira. O Comitê lembra sua Recomendação Geral No. 24, na qual afirma que é dever dos Estados-partes garantir o direito das mulheres à maternidade segura e a serviços obstétricos de emergência e alocar a esses serviços o máximo de recursos disponíveis.[21] Afirma ainda que as medidas para eliminar a discriminação contra a mulher são consideradas inadequadas num sistema de saúde que não dispõe de serviços de prevenção, deteção e tratamento de doenças específicos das mulheres.[22] À luz dessas observações, o Comitê também rejeita o argumento do Estado-parte de que a comunicação não continha um nexo de causalidade entre o gênero da Sra. da Silva Pimentel Teixeira e os possíveis erros médicos cometidos, mas que as alegações diziam respeito à falta de acesso a cuidados médicos relacionados à gravidez. O Comitê, portanto, entende que a morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira deve ser considerada materna.

7.4 O Comitê observa também a alegação da autora sobre a má qualidade dos serviços de saúde prestados à sua filha, que incluiu não só a não realização do exame de sangue e urina, mas também o fato de a curetagem só ter sido efetuada 14 horas após a indução do parto para a remoção da placenta e restos placentários, que não tinham sido totalmente expelidos durante o processo de parto e que poderiam ter causado a hemorragia e, em última análise, a morte. A cirurgia foi feita no centro de saúde, que não estava devidamente equipado, e a sua transferência para o hospital municipal demorou oito horas, uma vez que o hospital se recusou a ceder a sua única ambulância para o seu transporte e a sua família não conseguiu garantir uma ambulância particular. Observa ainda que a sua transferência para o hospital municipal sem o seu histórico clínico e informações sobre o seu histórico médico foi ineficaz, visto que foi deixada em grande parte sem acompanhamento numa zona improvisada no corredor do hospital durante 21 horas até à sua morte. O Estado-parte não negou a inadequação do serviço nem refutou qualquer um desses fatos. Em vez disso, admitiu que a condição de vulnerabilidade da Sra. da Silva Pimentel Teixeira exigia tratamento médico individualizado, o que não aconteceu devido a uma potencial falha na assistência médica prestada por uma instituição privada de saúde, causada por negligência profissional, infraestrutura inadequada e falta de preparação profissional. O Comitê conclui, portanto, que não foram assegurados à Sra. da Silva Pimentel Teixeira serviços adequados em relação à sua gravidez.

7.5 O Estado-parte argumentou que a inadequação do serviço não lhe é imputável, mas sim à instituição privada de saúde. Afirmou que as alegações revelavam uma série de más práticas médicas imputáveis a uma instituição privada que levaram à morte da Sra. da Silva Pimentel Teixeira. Reconheceu as deficiências no sistema utilizado para a contratação de serviços privados de saúde e, por extensão, na sua fiscalização e controle. O Comitê observa, portanto, que o Estado é diretamente responsável pela atuação das instituições privadas quando terceiriza seus serviços médicos e que, além disso, o Estado mantém sempre o dever de regular e fiscalizar as instituições privadas de saúde. De acordo com a alínea e) do artigo 2° da Convenção, o Estado-parte tem a obrigação de diligência devida de tomar medidas para garantir que as atividades dos atores privados em relação às políticas e práticas de saúde sejam adequadas. No caso concreto, a responsabilidade do Estado-parte está fortemente ancorada na Constituição brasileira (artigos 196 a 200) que afirma o direito à saúde como um direito humano geral. O Comitê conclui, portanto, que o Estado-parte não cumpriu com suas obrigações decorrentes do artigo 12, parágrafo 2, da Convenção.

7.6 O Comitê observa que a autora alega que a falta de acesso a cuidados médicos de qualidade durante o parto é um problema sistêmico no Brasil, especialmente no que diz respeito à forma como os recursos humanos são geridos no sistema de saúde brasileiro. O Comitê também toma nota do argumento do Estado-parte de que a assistência médica específica não foi negada por falta de políticas públicas e medidas no âmbito do Estado-parte, visto que existem várias políticas em vigor para atender às necessidades específicas das mulheres. O Comitê refere-se à sua recomendação geral n.º 28 (2010) sobre as obrigações essenciais dos Estados-partes ao abrigo do artigo 2° da Convenção e observa que as políticas do Estado-parte devem ser orientadas para a ação e os resultados, bem como devidamente financiadas.[23] Além disso, a política deve garantir que existam órgãos fortes e focados dentro do poder executivo para implementar tais políticas. A falta de serviços de saúde materna adequados no Estado-parte, que claramente não atendem às necessidades e interesses de saúde específicos e distintos das mulheres, não constitui apenas uma violação do artigo 12, parágrafo 2, da Convenção, mas também discriminação contra as mulheres nos termos do artigo 12, parágrafo 1, e do artigo 2 da Convenção. Além disso, a falta de serviços de saúde materna adequados tem um impacto diferenciado no direito à vida das mulheres.

7.7 O Comitê observa a alegação da autora de que a Sra. da Silva Pimentel Teixeira sofreu discriminação múltipla, sendo uma mulher negra e em razão de sua origem socioeconômica. A este respeito, o Comitê relembra suas observações finais sobre o Brasil, adotadas em 15 de agosto de 2007, onde observou a existência de discriminação de fato contra as mulheres, especialmente as mulheres dos setores mais vulneráveis da sociedade, como as mulheres negras. Também observou que tal discriminação era exacerbada pelas disparidades regionais, econômicas e sociais. O Comitê também relembra sua Recomendação Geral No. 28 (2010) sobre as obrigações essenciais dos Estados-partes ao abrigo do artigo 2 da Convenção, reconhecendo que a discriminação contra as mulheres com base no sexo e gênero está inextricavelmente ligada a outros fatores que afetam as mulheres, como raça, etnia, religião ou crença, saúde, status, idade, classe, casta, orientação sexual e identidade de gênero. O Comitê observa que o Estado-parte não descartou que a discriminação possa ter contribuído em certa medida, mas não de forma decisiva, para a morte da filha da autora. O Estado-parte também reconheceu que a convergência ou associação dos diferentes elementos descritos pela autora pode ter contribuído para a não prestação da assistência necessária e de emergência à sua filha, resultando em sua morte. Em tais circunstâncias, o Comitê conclui que a Sra. da Silva Pimentel Teixeira foi discriminada, não apenas em razão do seu sexo, mas também em razão da sua condição de mulher negra e da sua origem socioeconômica.

7.8 No que diz respeito à alegação da autora nos termos dos artigos 12 e 2 (c) da Convenção, de que o Estado-parte não estabeleceu um sistema para garantir proteção judicial efetiva e fornecer recursos judiciais adequados, o Comitê observa que não foi instaurado nenhum processo para apurar a responsabilidade dos responsáveis pela prestação de cuidados médicos à Sra. da Silva Pimentel Teixeira. Além disso, a ação cível, que foi ajuizada em fevereiro de 2003 pela família da falecida, ainda está pendente, apesar da alegação do Estado-parte de que a sentença era esperada para julho de 2008. Além disso, os dois pedidos de tutela antecipada, um mecanismo judicial que poderia ter sido usado para evitar atrasos injustificados na decisão judicial, foram negados. Em tais circunstâncias, o Comitê considera que o Estado-parte não cumpriu sua obrigação de garantir ação judicial efetiva e proteção.

7.9 O Comitê reconhece o dano moral causado à autora pela morte de sua filha, bem como o dano moral e material sofrido pela filha da falecida, que foi abandonada pelo pai e vive com a autora em condições precárias.

Recomendações

8. Agindo nos termos do artigo 7°, parágrafo 3, do Protocolo Facultativo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, e à luz de todas as considerações acima, o Comitê considera que o Estado-parte violou suas obrigações nos termos do artigo 12 (em relação ao acesso à saúde), artigo 2 © (em relação ao acesso à justiça) e artigo 2 (e) (em relação à obrigação de diligência devida do Estado-parte de regular as atividades dos prestadores privados de serviços de saúde), em conjunto com o artigo 1, da Convenção, lidos em conjunto com as Recomendações Gerais Nos. 24 e 28, e formula as seguintes recomendações ao Estado-parte:

1. Em relação à autora e à família da Sra. da Silva Pimentel Teixeira:

Fornecer reparação adequada, incluindo compensação financeira adequada, à autora e à filha da Sra. da Silva Pimentel Teixeira, compatível com a gravidade das violações cometidas contra ela;

2. Em geral:

(a) Garantir o direito das mulheres à maternidade segura e acesso acessível para todas as mulheres a cuidados obstétricos de emergência adequados, de acordo com a recomendação geral nº 24 (1999) sobre mulheres e saúde;

(b) Fornecer treinamento profissional adequado para profissionais de saúde, especialmente sobre os direitos de saúde reprodutiva das mulheres, incluindo tratamento médico de qualidade durante a gravidez e o parto, bem como assistência obstétrica de emergência em tempo hábil;

(c) Garantir o acesso a recursos efetivos nos casos em que os direitos de saúde reprodutiva das mulheres tenham sido violados e fornecer treinamento para o judiciário e para os agentes da lei;

(d) Garantir que os serviços privados de saúde cumpram as normas nacionais e internacionais relevantes sobre cuidados de saúde reprodutiva;

(e) Garantir que sejam impostas sanções adequadas aos profissionais de saúde que violem os direitos de saúde reprodutiva das mulheres;

(f) Reduzir as mortes maternas evitáveis por meio da implementação do Pacto Nacional para a Redução da Mortalidade Materna em nível estadual e municipal, inclusive estabelecendo comitês de mortalidade materna onde ainda não existam, de acordo com as recomendações em suas observações finais para o Brasil, adotadas em 15 de agosto de 2007 (CEDAW/C/BRA/CO/6).

9. De acordo com o artigo 7°, parágrafo 4, do Protocolo Facultativo, o Estado-parte deve dar a devida consideração aos ditames do Comitê, juntamente com suas recomendações, e deve apresentar ao Comitê, dentro de seis meses, uma resposta escrita, incluindo qualquer informação sobre qualquer ação tomada à luz dos ditames e recomendações do Comitê. O Estado-parte também é solicitado a publicar os ditames e recomendações do Comitê e a traduzi-los para a língua portuguesa e outras línguas regionais reconhecidas, conforme apropriado, e a distribuí-los amplamente, a fim de atingir todos os setores relevantes da sociedade.

* Os seguintes membros do Comitê participaram do exame da presente comunicação: Sra. Ayse Feride Acar, Sra. Nicole Ameline, Sra. Magalys Arocha Dominguez, Sra. Violet Tsisiga Awori, Sra. Barbara Evelyn Bailey, Sra. Olinda Bareiro-Bobadilla, Sra. Meriem Belmihoub-Zerdani, Sr. Niklas Bruun, Sra. Naela Mohamed Gabr, Sra. Ruth Halperin-Kaddari, Sra. Yoko Hayashi, Sra. Ismat Jahan, Sra. Soledad Murillo de la Vega, Sra. Violeta Neubauer, Sra. Pramila Patten, Sra. Maria Helena Lopes de Jesus Pires, Sra. Victoria Popescu, Sra. Zohra Rasekh, Sra. Patricia Schulz, Sra. Dubravka Šimonović e Sra. Zou Xiaoqiao. De acordo com a regra 60 do Regulamento do Comitê, a membro do Comitê Sra. Silvia Pimentel não participou do exame da presente comunicação.

[1] O Comitê recebeu memoriais amici curiae do Comitê Latino-Americano e Caribenho de Defesa dos Direitos da Mulher, da Comissão Internacional de Juristas e da Anistia Internacional, fornecendo informações gerais sobre o direito à saúde e mortalidade materna no Brasil e chamando a atenção para as obrigações internacionais dos Estados.

[2] O processo contém informações contraditórias sobre quem exatamente entrou com a ação civil em 11 de fevereiro de 2003. Em alguns lugares menciona a mãe da falecida, enquanto em outros menciona seu marido.

[3] A esse respeito, a autora faz referência à Recomendação Geral No. 24 (1999) do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher sobre o artigo 12 da Convenção (mulheres e saúde) e à observação geral Nº. 14 (2000) do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sobre o direito ao mais alto padrão atingível de saúde (art. 12).

[4] Ver “Tornando a gravidez mais segura: o papel crítico do atendente qualificado”, uma declaração conjunta da Organização Mundial da Saúde (OMS), da Confederação Internacional de Parteiras e da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (2004).

[5] Tutela antecipada é um mecanismo judicial que solicita ao juiz que antecipe os efeitos protetivos de uma decisão. Pode ser utilizada para evitar atrasos injustificados na decisão judicial que podem causar danos irreparáveis ou graves.

[6] Segundo o dispositivo, compete ao Sistema Único de Saúde (SUS), além de outras atribuições, conforme a lei: fiscalizar e controlar processos, produtos e substâncias de interesse à saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; realizar ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as relativas à saúde do trabalhador; organizar a formação de pessoal na área da saúde; participar da definição da política e da implementação das ações de saneamento básico; fomentar, no seu âmbito de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico; Fiscalizar e inspecionar alimentos, incluindo o seu conteúdo nutricional, bem como as bebidas e a água para consumo humano; Participar na fiscalização e controle da produção, transporte, armazenamento e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; e cooperar na preservação do meio ambiente, incluindo o local de trabalho.

[7] Equipe das Nações Unidas no país, A UN Reading of Brazil’s Challenges and Potential (2005), pág. 40 (disponível em http://www.unodc.org/pdf/brazil/Final%20CCA%20Brazil%20(eng).pdf).

[8] Comunicação No. 2/2003, A.T. v. Hungria, Ditame adotado em 26 de janeiro de 2005, parágrafo 8.4.

[9] Ver Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Acesso à Justiça para Mulheres Vítimas de Violência nas Américas, parágrafos 208, 212, 213, 215 e 216 (2007).

[10] Ver Acesso à Justiça para Mulheres Vítimas de Violência nas Américas, parágrafos 88 e 89.

[11] Ibid., parágrafo 213.

[12] Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 4, 11 e 53.

[13] A autora se refere, a esse respeito, à Observação Geral No. 14 do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

[14] Ver CEDAW/C/BRA/CO/6.

[15] Ver a recomendação geral nº 24 do Comitê, parágrafos 11 e 12, e a Recomendação Geral No. 25 (2004) sobre o artigo 4°, parágrafo 1°, da Convenção (medidas especiais de caráter temporário), parágrafo 8.

[16] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Damião Ximenes Lopes vs. Brasil, petição 12.237, relatório nº 38/02, parágrafo 19.

[17] Ximenes Lopes vs. Brasil, Corte Interamericana de Direitos Humanos, série C, nº 149 (4 de julho de 2006).

[18] Comunicação No. 4/2004, A.S. v. Hungria, Ditame adotado em 14 de agosto de 2006, parágrafo 11.5.

[19] OMS, Mortalidade Materna em 2005: Estimativas desenvolvidas pela OMS, UNICEF, UNFPA e Banco Mundial, p. 4.

[20] Ministério da Saúde, Manual dos Comitês de Mortalidade Materna (3ª ed., 2007), p. 12.

[21] Parágrafo 27.

[22] Parágrafo 11.

[23] Parágrafo 28.

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Henrique Napoleão Alves
Henrique Napoleão Alves

Written by Henrique Napoleão Alves

Ph.D. in Law | Lawyer, lecturer, researcher | Views in personal capacity | Advogado e professor. Opiniões em caráter individual.

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