“Cinco Minutos de Filosofia do Direito” (1945)
Escrito por Gustav Radbruch (1878–1949)*
Primeiro Minuto
“Ordens são ordens”, diz o soldado. “Lei é lei”, diz o jurista. O soldado, porém, não é obrigado nem pelo dever nem pela lei a obedecer a uma ordem cujo objeto ele sabe ser um crime ou delito. Já o jurista… Desde que os últimos jusnaturalistas morreram, há cerca de cem anos , o jurista não reconhece exceções à validade de uma lei e à sua obediência pelos que estão sujeitos a ela. A lei é válida porque é lei, e é lei quando tem o poder de se impor à maioria dos casos.
Essa visão sobre a lei e sua validade, que chamamos de doutrina positivista, torna os juristas e o povo indefesos contra leis arbitrárias, cruéis e criminosas. Em última análise, ela equipara o Direito ao poder: só há Direito onde há poder.
Segundo Minuto
Tentativas foram feitas para complementar ou substituir o princípio positivista por outro: “Direito é aquilo que beneficia o povo”.
Isso significa que arbitrariedade, quebra de contrato e ilegalidade, desde que beneficiem o povo, são Direito. Isso significa, na prática, que tudo o que o detentor do poder estatal considera de interesse do povo; cada capricho e cada humor do déspota; cada punição e cada julgamento alheios à legalidade; cada extermínio antijurídico de pessoas doentes; isso significa que cada uma dessas coisas passa a ser Direito. Significa que o interesse próprio dos governantes pode acabar visto como interesse público. Foi assim que a equiparação do Direito ao suposto ou alegado bem-estar do povo transformou um Estado de Direito em um Estado de Injustiça.
Não, não devemos dizer “tudo o que beneficia o povo é Direito”, mas sim o contrário: somente o que é Direito beneficia o povo.
Terceiro Minuto
Direito é vontade de justiça. Justiça, por sua vez, significa: julgar sem distinção de pessoa, medir tudo na mesma medida.
Quando alguém aplaude o extermínio de opositores políticos, ou ordena o de pessoas de outra raça, mas aplica as penas mais cruéis e desonrosas a atos idênticos quando cometidos contra seus correlegionários, não há mais Justiça nem Direito.
Quando as leis negam deliberadamente a vontade de justiça — por exemplo, concedendo e negando direitos humanos às pessoas arbitrariamente— então essas leis não têm validade, o povo não lhes deve obediência e os juristas também devem ter a coragem de negar-lhes o caráter jurídico.
Quarto Minuto
Certamente o bem comum é também, como a justiça, um dos fins do Direito. Certamente a lei, mesmo a ruim, conserva em si um valor: o de garantir segurança frente à dúvida. Certamente é verdade que, devido à imperfeição humana, os três valores do Direito — bem comum, segurança jurídica e justiça — nem sempre estão unidos harmoniosamente nas leis. O único remédio ou recurso, então, é o de ponderar se a validade deve ser concedida mesmo às leis más, nocivas ou injustas, em nome da segurança jurídica; ou se a validade lhe deve ser negada por causa da injustiça ou nocividade social. Uma coisa, porém, deveria ser impressa de forma indelével na consciência do povo, bem como dos juristas: pode haver leis tão injustas e prejudiciais ao bem comum que a validade e o próprio caráter de Direito deveria ser negado a elas.
Quinto Minuto
Existem, pois, princípios de Direito que são mais importantes do que qualquer promulgação legal, de modo que uma lei em conflito com eles é desprovida de validade. Esses princípios são conhecidos como direito natural ou direito racional. Sem dúvida, tais princípios encontram-se, no seu pormenor, envoltos em dúvidas e questionamentos. O trabalho dos séculos, porém, conseguiu extrair deles um núcleo firme e seguro, reunido nas declarações dos direitos do homem e do cidadão; um núcleo com tal nível de generalizada concordância que somente o ceticismo premeditado poderia, de algum modo, dele duvidar.
Na linguagem da fé, estes mesmos pensamentos estão expressos em duas passagens bíblicas. Numa delas, está escrito: “Todos devem sujeitar‑se às autoridades governamentais” [Romanos 13:1]. Numa outra, porém, está escrito: “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens” [Atos dos Apóstolos 5:29] —, o que não expressa um desejo piedoso, mas um princípio jurídico válido. A tensão entre essas passagens não pode ser resolvida por uma terceira como o ditado: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” [Mateus 22:21] — , porque essa passagem ainda deixa no ar quais são os limites da validade. A solução, na verdade, está na voz de Deus, a voz que só fala à consciência do indivíduo diante do caso concreto.
O texto acima foi traduzido do original em alemão para o português por Klaus Berger em julho de 2024. A tradução foi revisada pelo professor Henrique Napoleão Alves. O revisor agradece ao Sr. Berger pelo bom trabalho realizado.
Gustav Radbruch distribuiu o texto aos seus alunos como panfleto ou handout. Em 12 de setembro de 1945, o texto foi publicado no jornal alemão Rhein-Neckar-Zeitung, doze dias após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Como citar:
RADBRUCH, Gustav. Cinco Minutos de Filosofia do Direito [Fünf Minuten Rechtsphilosophie]. Trad. Klaus Berger. Rev. Henrique Napoleão Alves. Medium, 27 de julho de 2024 [1945].